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Tulipa de Almeida Aguiar

1940 - 2021

Se alguém citasse algum fato não anotado em seu caderno de memórias, ela dizia que não tinha acontecido.

Uma flor generosa, que teve a caridade como guia e espalhou belos momentos pelos caminhos da vida. Assim foi a mulher que também tinha nome de flor, cheiro de creme facial e de loção de rosas, e que usava vestidos floridos. Dona Tulipa, movida pelos princípios do espiritismo, fez diferença na vida da família e de pessoas que viu apenas uma vez na vida.

Segunda filha de Dona Guiomar e Umbelino, Tulipa nasceu na Fazenda Santa Maria, em Sacramento, Minas Gerais. No local, desde o final do século XIX, acontecem importantes manifestações espíritas. Prima de Bezerra de Menezes e Sinhô Mariano, ela pôde acompanhar o trabalho fitoterápico desenvolvido no centro espírita fundado em 1920. Foi nesta fonte que ela bebeu para tornar-se quem foi.

A infância transcorreu na tranquilidade do lugar, numa tapera de chão batido, onde os pais cultivavam de tudo um pouco para a subsistência da família. Subir nas árvores e apanhar frutas para comer escondido estava entre uma de suas travessuras, uma vez que, por alguma restrição alimentar, os pais diziam que ela não podia comer frutas.

Juntamente com os irmãos Sônia, Hipólito, Dilma, Paula, Mariano, Maria José, João, Nádia — e na simplicidade dos modos interioranos —, Tulipa cresceu feliz e tornou-se uma mulher alegre e forte espiritualmente. Uma outra irmã chamada Mara Isa viveu apenas sete dias porque contraiu tétano. Em homenagem, a primeira filha de Tulipa ganhou o mesmo nome dela.

Na juventude, a necessidade de estudar levou Tulipa para a casa da tia Urzela, em Uberaba, para onde se mudou juntamente com o primo Garibalde e seu irmão Hipólito. Os três nasceram na mesma fazenda e mantiveram uma convivência desde então. Contudo, Garibalde e Tulipa foram se afeiçoando um ao outro e decidiram se casar. Com os amores e desafios da vida a dois, formaram um casal por cinquenta e sete anos.

Antes de se apaixonar por Garibalde, Tulipa teve outros namorados. Por recomendação de seus pais, ela não podia sair sozinha com rapazes de Uberaba. A missão de acompanhar os passeios da prima cabia exatamente a Garibalde, que, como se diz no popular, era a “vela” dos relacionamentos amorosos da prima.

Por essas voltas que o amor dá, ela acabou escolhendo ficar com o “vela”. E os dois, ela com 23 e ele com 27 anos, decidiram ser companheiros. Para o dia do casamento, Tulipa escolheu um vestido com saia e grinalda curtos. Na cerimônia, trazia no rosto sua fisionomia angelical e nas mãos um buquê de flores naturais.

Durante toda a vida Tulipa seguiu estudando a doutrina espírita e, em Uberaba, teve a oportunidade de conhecer Chico Xavier, uma referência do espiritismo no Brasil, e pôde participar de muitas atividades que ele realizava. Colecionadora e leitora constante de livros espíritas, usava o que aprendia para praticar a caridade. Cuidava de doentes; levava os familiares para sua casa a fim de cuidar deles quando adoeciam; ajudava a fazer sopas nos centros espíritas e estava sempre disposta a ajudar a todos que necessitavam. Muitas vezes ela colocava pessoas totalmente estranhas para dentro de casa e oferecia a elas uma refeição.

Outra habilidade marcante na vida de Dona Tulipa era a costura, também usada para fazer o bem. De suas mãos cuidadosas, nos centros espíritas da cidade, brotaram muitos enxovais que foram doados a mulheres grávidas. Como costureira também ajudava no orçamento doméstico, produzindo roupas para confecções e clientes particulares. O resultado sempre eram peças com acabamento impecável.

Dilma, irmã de Dona Tulipa, rememora que toda a vizinhança gostava dela. Conta com orgulho que ela era uma pessoa humana, e que colocava a família, os filhos e o marido em primeiro lugar. Relembra também que foi ela quem cuidou da avó Odília quando o esposo João Antônio faleceu. Com todo zelo, ela passou a dormir com Dona Dila — forma carinhosa usada para se referir à sua avozinha querida. Resumindo seu sentimento em relação à irmã, Dilma diz que Tulipa “deixou um rastro bem marcado, pois o objetivo dela era olhar os necessitados; me lembro de suas vizinhas, ela não media esforços para ajudá-las. São muitos os momentos em que revejo a Tulipa indo ao encontro de quem estivesse necessitado. Para ela, difícil seria não poder fazer nada”.

No lugar de mãe, também foi amorosa e cuidadosa com os filhos Mara Isa, Mara Lúcia, Marcelo e Mara Célia. Matriculou todos eles no catecismo kardecista, por entender que era importante ter uma religião. É Mara Lúcia quem conta: “Ela nos levava sempre aos centros espíritas para tomar passe. Pegava também mensagens espíritas e remédios homeopáticos para cada um de nós. Para mim nunca vinham remédios, mas sempre a mensagem de que eu era médium e tinha que desenvolver minha mediunidade".

Apesar do orçamento curto e de uma vida sempre simples, Tulipa não descuidava do lazer. Durante toda a infância dos filhos, levava a criançada para passar as férias na casa dos avós paternos, proporcionando contato com um pouco do que vivera enquanto menina. Era também oportunidade de estreitar os laços de família pela convivência com avós, tios e primos. Os momentos inesquecíveis eram marcados por uma experiência maravilhosa com banhos no Córrego Lajeado, que eram frescor e diversão pura. Todo ano fazia questão de passear com os filhos na tradicional exposição de gado zebu de Uberaba. Mesmo com dinheiro contado, ela levava todo mundo até o parque onde funcionava a exposição.

A filha Mara Lúcia recorda que, quando nasceu, ela e a mãe quase morreram. Tulipa ficou bastante debilitada, o que produziu um fato curioso. Ela queria que a segunda filha recebesse o nome de Nara Lúcia. Já no dia seguinte ao parto, Seu Garibalde queria registrar a filha e perguntou à Dona Tulipa qual seria o nome da menina. Meio grogue, não conseguiu falar direito e ele entendeu Mara, já que a primeira filha se chamava Mara Isa em homenagem à irmãzinha que faleceu. O acontecimento criou a regra de que as filhas tivessem Mara como primeiro nome.

O filho Marcelo protagonizou um acontecimento que gerou muita preocupação à Dona Tulipa, mas que, contando depois do ocorrido, foi bastante engraçado. Os dois foram a uma loja comprar peixes para o aquário, que era uma das paixões do menino. Pois sem nenhuma explicação razoável, como é de praxe nestas situações, Marcelo sumiu. Tulipa procurou, avisou à polícia sobre o desaparecimento do filho e nada dele aparecer. Já cansada e angustiada, Dona Tulipa decide voltar para casa e aguardar alguma notícia. Mal entrou e deu de frente com o menino — que na época tinha somente 5 anos! Apesar da pouca idade, ele foi capaz de guardar o caminho de volta e foi encontrado todo belo, tranquilo e formoso num cômodo da casa. Envergonhada, Dona Tulipa rapidamente avisou à polícia sobre o que acontecera.

As memórias dos filhos também são povoadas pelos sabores. Na cozinha da casa, Dona Tulipa preparava bolos, lasanhas, macarronadas, bolinhos de chuva, arroz-doce, canjica doce com paçoca, baurus. Nos cafés da manhã dos infantes e adolescentes, sempre chamados de “meninos", em vez de pão, servia gemadas batidas no liquidificador e vitaminas de frutas.

Como avó de Larissa, Iatã, Bernardo, Letícia, Felipe e Vinícius, Tulipa também participou de muitos momentos que fazem parte de sua história e de boas lembranças dos familiares. Cada um deles foi esperado pela avó com muita felicidade. No afã de cuidar dos netinhos para que as filhas pudessem continuar estudando e trabalhando, Tulipa foi se afastando das atividades de costura.

A filha Mara Lúcia conta que ainda era estudante quando engravidou e não era casada. Seu Garibalde ficou aborrecido e não queria ajudar a filha. Com muito jeito e habilidade, Tulipa contornou a situação e decidiu que iriam comprar todo o enxoval da primeira neta. Comprou o necessário para a netinha e também tecidos com os quais fez lindas roupas para que Mara Lúcia usasse durante a gravidez. Nesta época, Tulipa ensinou Mara Lúcia a bordar. Juntas, em meio a boa prosa sobre a vida, as duas encheram de mimos algumas peças do enxoval da menina que, com o tempo, também foram usadas por outros netos.

O nascimento de Larissa logo conquistou o coração de Seu Garibalde, que também decidiu curtir a primeira neta juntamente com a esposa. Foram eles que cuidaram da menina para que Mara Lúcia fizesse mestrado fora de Uberaba. Juntos eles cuidavam de tudo: do banho, da alimentação e até dos momentos de levar e buscar na escola.

Os mesmos cuidados foram dedicados a Iatã e posteriormente ao Bernardo para que a mãe Mara Isa pudesse cumprir com as viagens de trabalho. Não foi diferente com Felipe e Letícia, filhos de Mara Célia. Mesmo com 70 anos, ela manifestou total disposição para cuidar do neto Vinícius, filho de Marcelo. Porém, sofreu um acidente, ficou muito debilitada e não pôde cumprir o que havia prometido.

Bernardo conta feliz que a avó sempre o defendia quando o avô ficava bravo com ele. Sabendo do fascínio do menino pelos trens de ferro, ia passear com ele na Mogiana, a companhia ferroviária na qual Seu Garibalde outrora trabalhara.

Por sua vez, Larissa conta que ia com a avó aos centros espíritas para tomar passe ou para ficar brincando por lá enquanto ela costurava. Lembra também que juntas iam visitar a Nilda, amiga da avó e que atravessavam um pasto cheio de vacas. Dos invernos, tem na lembrança que Tulipa era friorenta e tem bem presente a imagem dela vestida com um robe de matelassê para se aquecer. Na infância de Larissa, as duas tomaram banho juntas em diversas ocasiões. E a neta recorda da avó fazendo suas ginásticas enquanto se banhavam.

Outro fato que Larissa conta entre risos é que a avó considerava que criança não podia tomar café. Contudo a menina insistia muito, pois apreciava a bebida. Para não contrariar a neta, Dona Tulipa servia um pouco de café e misturava água nele para que ficasse mais ralo.

Iatã trouxe deliciosas “pílulas de boas memórias” da sua avó para enfeitar esta homenagem. No olhar da senhora com nome de flor, o neto parecia sempre uma criança, embora já tivesse passado dos 20 anos. Ele define Dona Tulipa como uma pessoa curiosa e bastante inteligente, que esteve presente na maioria das primeiras descobertas de sua infância. E narra um acontecimento muito incomum nos dias de hoje. Havia na casa um mapa do Brasil bem grande, comprado na capital mineira, Belo Horizonte. A versão impressa foi colocada no chão e, espichando-se sobre ele, decidiram localizar a cidade de Uberaba, onde ela morava e a cidade paulista de Franca, onde morava a maioria das irmãs de Dona Tulipa. O desafio aumentou quando ela cismou de tentar descobrir a localização aproximada da Fazenda Santa Maria, onde nascera. Um ponto foi identificado sem muita certeza, já que pequenos povoados não são referenciados em mapas que representam o país inteiro.

Nas pílulas de memória de Iatã ainda estão hábitos tais como o de misturar cerveja com refrigerante e dizer que estava bebendo cerveja preta; o de dizer: "Eu hein, Rosa!" ou “fica mais um pouco" e "não vai embora porque ainda está cedo”. Lembranças de puro afeto da mão macia e carinhosa que segurava firme a de Iatã nos passeios ao centro de Uberaba, principalmente durante as travessias apressadas de ruas movimentadas. Da mão dela também segurando a dele dentro do ônibus Uberaba-Franca enquanto o coletivo cruzava a ponte do Rio Grande, porque o menino “tinha um medo irracional de a ponte cair”. Com o adicional de que, para tranquilizar o neto, ela falava toda vez que não ia acontecer nada.

A neta Letícia relembra que ela e a avó “sempre foram muito grudadas”. Tulipa ficava sempre muito feliz com as visitas que a neta lhe fazia. O tempo ia passando e num dado momento, carinhosamente, a avó dizia “já está bom. Nós já matamos a saudade e você já pode ir embora". A lembrança aquece o coração da neta que dá muitas risadas quando se lembra disso, acrescentando que todas as vezes que conversava com Dona Tulipa ela dizia que estava com saudades.

Bom lembrar que a celebração dos aniversários dos netos atravessou boa parte da vida de Tulipa. Mesmo com pouco dinheiro, ela sempre encontrava algum jeito de comprar uma lembrança. Nos encontros, que na maioria das vezes reuniam boa parte da família, era tempo de churrascos, abraços, sorrisos e festa.

A casa de Tulipa e Garibalde estava sempre aberta para acolher parentes vindos do interior para estudar. Foi o que aconteceu com os irmãos João e Mariano, que moraram na casa deles enquanto estavam na universidade. Outra que recebeu abrigo foi Verônica, que era noiva do irmão Hipólito e morou com Dona Tulipa até o casamento. Sua casa sempre esteve aberta a cuidar de quem precisasse e, embora o orçamento fosse justo, Tulipa dizia que “onde comem dois, comem três”.

Por pouco tempo, Tulipa morou fora de Uberaba. A família seguiu para Ribeirão Preto, São Paulo, em função de uma transferência de Seu Garibalde, que era ferroviário. Foi no interior paulista que nasceu Mara Célia, a filha mais nova do casal. Em decorrência de complicações na cesariana, ela precisou ir para Franca a fim de que os irmãos cuidassem dela. Recuperada e pouco adaptada a Ribeirão Preto, Tulipa resolveu voltar para Uberaba, mesmo sabendo que o esposo precisaria ficar mais um tempo por lá até ser transferido de volta.

Neste retorno, o casal decidiu demolir a casa onde moravam e construir outra. Foi Dona Tulipa quem acompanhou a construção, comprou materiais, contratou e administrou os trabalhadores da obra. Ela precisou se responsabilizar por tudo, uma vez que Seu Garibalde ainda estava trabalhando fora.

Num espaço de tantas lembranças, é necessário falar de esquecimento. Em decorrência de um acidente e de alguns problemas de saúde, Dona Tulipa ficou com a memória afetada e se esquecia de muita coisa. Contudo, o esquecimento acabou por fazer um grande bem para a relação dela com Seu Garibalde, que passou a cuidar da esposa, que cuidara de tanta gente e naquele momento demandava cuidado. No dia em que retornou do hospital, o esposo a recebeu com um cravo vermelho. No vácuo da memória de Dona Tulipa ficaram os momentos difíceis da relação com o esposo e passou a chamá-lo de “meu amorzinho”. E assim, Seu Garibalde cuidou dela até o último instante.

Um outro acontecimento marcante e que revelava a esperteza de Dona Tulipa foi a invenção de um caderno de memórias. Nele ela anotava tudo. Muitas vezes, como recorda o neto Iatã, usava códigos. O engraçado é que quando alguém dizia que algo tinha acontecido e ela não se lembrava, Tulipa logo pegava o caderno e folheava em busca da informação sobre o assunto mencionado. Se porventura não tivesse anotado o fato, sem pestanejar, ela devolvia que aquilo não tinha acontecido porque “não está no meu caderno”.

Antes de finalizar esta história cheia de memórias, carinhos e acontecimentos, é importante contar que nos últimos tempos Tulipa resolveu presentear pessoas da família com seus pertences. Deu para Mara Lúcia uma escultura e um pote de cerâmica que ganhara da avó paterna. Tinha sido uma retribuição de Dona Odília pelos cuidados da neta durante um adoecimento. Também para Mara Lúcia doou o primeiro documento de identidade e um conjunto de forros de crochê tecidos por suas mãos habilidosas, bem como todas as fotos que guardava. E são muitas, pois ela gostava muito de fotografias. Outro mimo, para a única filha que aprendeu a tecer com a mãe, foram todos os teares de tricô, todas as linhas de crochê, todas cabeças de bonecas e todas as revistas de artesanato. Alguns chaveiros e peças de crochê também feitos por ela são guardados como relíquia pela neta Letícia.

Uma referência especial ao curso de Economia Doméstica feito por Tulipa: era um dos seus grandes orgulhos, pois, no entremeio das demandas e dificuldades, ela conseguiu tempo para se formar. Voltando aos presentes, também doou para Mara Lúcia os livros de receitas culinárias da época em que fez o curso e todas as revistas que tinha sobre esse assunto. Para o neto Iatã — que de tanto ver a avó costurar e achar a atividade interessante fez um curso de costura — ela doou as máquinas de costura. Com ele seguem os equipamentos com os quais ela fez bem para tanta gente.

Tulipa segue viva nos momentos em que alguns parentes, antes de dormir, rezam um Pai Nosso, uma Ave Maria e duas outras orações ensinadas por ela; nas lembranças e no modo de ser de cada familiar, que remetem aos princípios vivenciados por ela e que permanecem vivos em cada pessoa que ela amou.

Tulipa nasceu em Guaxima (MG) e faleceu em Uberaba (MG), aos 80 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela filha de Tulipa, Mara Lúcia Nunes de Almeida. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Ernesto Marques, revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Rayane Urani em 3 de abril de 2022.