1939 - 2020
Com passos "mancos", mas nunca hesitantes, foi a leoa, o sol, a mãe... que deixou o amor como maior legado.
Uma vida dura, marcada por dores físicas e da alma. Contava diversas vezes uma história que a marcou: aos 3 anos, chegou um circo em sua cidade e sua mãe foi arrumar seu irmão e ela para conhecerem a novidade. Deu-lhes banho, passou uma roupa para os pequenos e deixou o ferro (àquela época, ferro a brasa) virado de ponta cabeça, como se fazia para esfriar. Num descuido, Vanilda caiu sentadinha justo em cima do ferro. Queimou parte das coxas e um pedaço da genitália. A vida inteira carregou essa história para contar e para sentir, pois uma perna ficou um pouco encurtada, repuxando e marcando seu caminhar.
A perninha curta não seria a marca mais forte no seu caminho de criança. Vanilda perdeu a mãe muito cedo. Já aos 8 anos, começou a trabalhar como empregada doméstica, profissão que foi pra sempre seu sustento. A infância atropelada estava diretamente ligada ao relacionamento com a madrasta que, como conta Danielle, fez jus aos sinônimos ruins que se associam ao termo nos dicionários: insensível, áspera, ríspida.
Apesar do lado difícil, juntou cada pedacinho alegre pra construir um caminho bonito. Foi uma pessoa feliz! Quando jovem, era muito namoradeira. Casou com Patrício, com quem trouxe ao mundo os filhos Dimas, Carmen e Patrício. Separou-se com os filhos muito novos, mas teve outro companheiro, o amor de sua vida. Avelino e Vanilda enfrentaram muitos obstáculos, mas viveram um lindo amor até a partida dele, no início dos anos 2000.
A neta Danielle tem tanto a falar da avó, mas antes de começar, faz questão de honrar o papel real dela em sua vida. "Ela é mãe do meu pai, mas me criou desde que nasci. Praticamente abriu mão de sua vida pra criar minha irmã Deisy, os bisnetos e me criar, com o maior exemplo de amor e dedicação. Devo a ela, na verdade minha mãe, meu destino até aqui e a pessoa que me tornei."
Em Mogi das Cruzes, tornou-se funcionária da prefeitura, onde se aposentou como ajudante geral em escolas de educação infantil. Dona Vani, como todos a chamavam, era uma baixinha bem brava, mas sempre manteve um ótimo relacionamento onde trabalhou.
Cuidar das plantas, dos 11 netos e dos sete bisnetos eram suas maiores paixões. A bisneta caçula, que morava com ela, completou um ano e Dona Vani não chegou a vê-la dar os primeiros passinhos. Mas Liz carregará a força no caminhar dessa mãe e avó leoa, que sempre defendeu os seus com unhas e dentes.
E Danielle segue falando com um orgulho imenso: "Falar da minha mãe é muito fácil e muito difícil ao mesmo tempo. Ela nos respeitava e nos protegia demais. Mesmo com uma enorme sensibilidade, ensinou-me a ser forte. Mas não o suficiente pra encarar esse momento, suportar a falta de seu carinho e do brilho de sua presença."
Vani tinha lá suas manias e a maior delas era comer escondido. Quando chegavam e ela estava com a boca cheia, era só perguntar o que estava comendo que ela prontamente respondia: "Nada!" Mas logo alguma comida escapava e era engraçado. Danielle diz que precisava pegar no pé da mãe direto, pois ela era diabética e, normalmente, os abusos eram doces.
Doces como ela, que era muito amada, sensível... "Sempre conversava muito e nos entendia. Seu colo estava sempre disponível. Ela era muito linda! Um dos meus orgulhos é que me pareço com ela quando jovem. Sempre tive cabelos compridos e, quando cortava, ela pedia para eu não fazer mais isso, pois dizia que eu era linda e se via em mim. Minha mãe era tudo na minha vida!", conta Danielle, em cada lágrima que escorre em seu peito, numa saudade que insiste em ficar.
Vani era vaidosa. Na juventude, mais ainda. Adorava batons e brincos... E os cabelos tinham que estar sempre impecáveis. Ela foi de uma época em que se usava muita peruca, cílios postiços... Unhas não! Ela nem gostava que perguntassem sobre as dela. Já respondia logo que eram naturais! Até seus últimos dias, pedia às filhas: "faz minhas unhas?" E era atendida, mas tinham que pintar de vermelho, como ela gostava.
Com a idade, veio a dificuldade de andar e sua fiel companheira passou a ser uma bengala. Danielle respira e sorri ao lembrar-se da última mania engraçada da mãe: "Cismava de nos cutucar com a bengala. Mas, pior que isso, era o humor. Ela andava muito brava, porque sua dentadura quebrou durante a pandemia. Não podíamos levá-la ao dentista nesse período e ela ficou com a autoestima baixa. Sua vaidade não a permitia sorrir. Mas, feliz e admirável como era, minha mãe dava sempre um jeitinho de rir."
Quando jovem, aproveitava muito os bailes. Ela, a amiga "Cozida" e Rosane, são todas dessa época. A filha diz que com a primeira perdeu o contato, mas Rosane ajudou Vani a vida inteira.
Outra boa lembrança dos bons tempos da juventude era viajar para Caraguatatuba. Adorava aquela cidade e chegou a morar lá. As limitações trazidas com a idade: dificuldade em andar e proibição de muita exposição ao sol, a levaram a perder o interesse pelos arredores de praia.
Em compensação, nada a impedia de cozinhar muito bem! Fazia uma salada de maionese inigualável. Seu prato preferido era costelinha de porco. Mas sua especialidade, que reinava absoluta no cardápio de todos os domingos, era macarronada, frango assado e salada de tomate com alface. Vani ficava brava com Danielle por ela ser vegetariana. Não entendia direito e, às vezes, falava: "come esse frango, ele está tão branquinho."
A filha entrega que sua mãe adorava comer em restaurantes. E comia bastante, até passar mal. Se havia uma frase típica que a família sempre ouvia era: "Ai, 'tô' com uma fome... 'tô' com vontade de comer alguma coisa, mas não sei o que é."
"Minha mãe viveu bastante coisa. Uma mulher da roça, batalhadora e guerreira. A melhor pessoa que já conheci. Uma pena ter deixado pra trás dois sonhos aparentemente simples. Um deles era assistir ao show do Roberto Carlos no cruzeiro. Ela adorava suas músicas e as do Wando também.
O outro sonho era fazer uma tatuagem. Ela foi comigo ao estúdio pra fazer, mas não deixaram, em razão de ser diabética. Então, ela 'me empurrou' pra fazer. Com o incentivo dela e a vibração a cada uma que eu ia acrescentando, hoje tenho mais de trinta, a maioria de flores... nossa paixão em comum.
Ela amava plantas: samambaias, flores-de-maio, violetas... cuidava de todas as flores, mas tinha paixão por orquídeas. Eu sempre cantava e, no dia em que foi internada, cantei pra ela uma música do grupo Ira, que diz: 'Como eu sou girassol / Você é meu sol'.
Ainda dói lembrar o que ela falou no hospital: 'não quero ficar aqui, estou bem, quero ir pra casa'. Meu sol se foi, meus dias nublaram, mas sei que o tempo me ajudará e ficarei só com a saudade do meu amor... minha linda mãe", despede-se Danielle com um misto de emoção e gratidão.
Vanilda nasceu em Mogi das Cruzes (SP) e faleceu em Guaratinguetá (SP), aos 81 anos, vítima do novo coronavírus.
Testemunho enviado pela neta, criada como filha de Vanilda, Danielle Sesma. Este tributo foi apurado por Denise Pereira, editado por Denise Pereira, revisado por Lígia Franzin e moderado por Rayane Urani em 4 de novembro de 2020.