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Walderi Cazé da Silva

1963 - 2020

Para que a Bíblia fosse acessível a mais pessoas, fundou a Associação de Surdos Evangélicos em Fortaleza.

Walderi era surdo e sempre foi muito atuante nessa comunidade, lutando para que a Língua Brasileira de Sinais (Libras) fosse mais disseminada pelo país. Incomodava-se com o fato de que a fé era quase sempre pregada apenas para e por ouvintes. Buscava frequentar igrejas que tivessem intérpretes, mas quis fazer mais pela sua comunidade.

Durante um acampamento no Rio de Janeiro, quando era jovem, havia tido contato com a Bíblia falada por pessoas surdas e encantou-se pela ideia. Anos mais tarde, fundou a Associação de Surdos Evangélicos, em Fortaleza, sendo considerado o primeiro surdo a falar sobre a Bíblia. Na Associação, as pessoas podiam conversar, jogar, falar sobre Deus, sobre suas vivências e organizar a luta para aumentar a inclusão dos surdos por meio de Libras.

Seu trabalho voluntário como presidente da associação era cansativo, mas Walderi não reclamava. Fazia por amor à comunidade surda e a Jesus, pois queria que todos tivessem a oportunidade de conhecer o Evangelho. Seu lema era: “A Bíblia é para todos, não importa a religião; somos todos iguais, Deus é o mesmo”.

Trabalhou por 35 anos na mesma empresa, como impressor gráfico. Além do grande carinho por parte dos colegas de trabalho, era pessoa de confiança e possuía uma cópia das chaves da empresa. Após sua partida, seus colegas fizeram quadros com os chinelos que costumava usar. Como homenagem, cada quadro foi pendurado em um local, para que a lembrança de Walderi fique para sempre presente.

O grande amor da vida de Walderi era sua família. Foi um pai muito carinhoso para Ana, sua única filha. Da infância, ela se lembra das idas ao mercadinho com o pai, quando ele imitava os pulinhos de seu caminhar infantil. Não economizava para fazer as vontades da esposa, que também era surda, e da filha, mesmo que às vezes levasse alguns puxões de orelha por causa disso. Um dos melhores presentes que Ana ganhou do pai foi uma camiseta da Barbie da coleção PcD (pessoa com deficiência), que queria muito. Mesmo tendo que esperar quase um mês para poder comprá-la, fez questão que a filha tivesse a peça. Ela guarda esse presente com muito carinho e cuidado. A gatinha da família era outra que tinha um grande amor por Walderi. Nos momentos bons e ruins, gostava de estar perto dele.

A família era muito unida. Todos os passeios eram feitos a três: fosse uma viagem ou mesmo uma ida à farmácia ou ao supermercado. Mas o programa favorito era passear no shopping. Simpático e carismático, Walderi logo fazia amizade com quem encontrasse: a vendedora de sorvetes, da loja de doces e quem mais cruzasse seu caminho. As sextas-feiras eram sempre reservadas a uma tradição: Ana e a mãe iam à tarde para a casa da avó e esperavam Walderi sair do trabalho e encontrá-las lá. Então, iam todos ao shopping comer um salgado de frango com queijo e um suco de laranja. Um simples programa em família que ficou guardado na memória de todos.

Uma das lembranças mais marcantes foi a viagem que fizeram de Fortaleza a São Paulo, a pedido da filha. O trajeto de três dias em um ônibus não muito novo tinha tudo para ser cansativo. Mas Walderi, com seu jeito alegre, logo transformou a epopeia em diversão e aventura. Fez amizade com todos os passageiros. Durante o trajeto, mesmo com a rotina alterada, lembrava-se sempre dos remédios da esposa e lhe entregava o comprimido e a água nos horários certinhos. Quando o ônibus quebrou, na Bahia, Walderi logo desceu para tentar ajudar, mas não havia muito o que ser feito. Com sua grande fé, pôs-se a orar por uma solução que permitisse seguirem viagem. Eis que surge um rapaz com uma camiseta escrito “Deus é fiel”. Nessa hora, teve certeza do atendimento de sua prece e que aquele jovem traria a solução. E assim foi feito. O rapaz identificou o problema com o ônibus e todos puderam seguir viagem.

Em São Paulo, divertiu-se muito ao lado da família e conheceu os principais pontos turísticos da cidade. Amava registrar tudo em fotos e estava sempre disposto a tirar uma selfie, inclusive com as vendedoras da famosa Rua 25 de Março. Feliz com o passeio e com a companhia da família, fez questão de esticar a viagem e também passear pelo Rio de Janeiro.

Walderi não economizava cuidados com a mãe. Como seu trabalho era próximo à casa dela, fazia questão de sempre passar por lá para almoçar e no fim da tarde, levando uma rapadura para comerem juntos. Era muito próximo dos irmãos e tinha uma afinidade especial com sua irmã, também surda.

Sempre foi econômico em contar sobre sua infância. Do pouco que falava, gostava de lembrar sobre a fazenda “Rio dos Moreiras”, que pertenceu aos seus avós. Também contava que gostava de surfar, viajar para acampamentos e para os retiros da igreja. A paixão pelo surfe durou até a vida adulta. Ainda arriscou algumas ondas com sua prancha rosa, mas acabou preferindo passar o pouco tempo livre com a família. Essas lembranças ficaram eternizadas em um quadro, feito por Walderi, dele e um amigo, também surdo e surfista, estão cercados por ondas e pranchas, em uma foto personalizada.

Ana reconhece em si traços da personalidade do pai. Tanta semelhança, além da proximidade e da amizade, às vezes causava alguns atritos. Mas a afinidade e o amor sempre prevaleceram. Além disso, Walderi era muito parecido fisicamente com a mãe. Para Ana, estar próxima à avó ameniza sua ausência.

A filha leva consigo uma tatuagem com o símbolo “Eu amo você” em Libras. Foi esse o último sinal que Walderi fez para sua esposa.

Walderi nasceu em Fortaleza (CE) e faleceu em Fortaleza (CE), aos 57 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pela filha de Walderi, Ana Carolina Cazé. Este tributo foi apurado por Emily Bem, editado por Marília Ohlson, revisado por Fernanda Ravagnani e moderado por Ana Macarini em 14 de setembro de 2021.