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Wanderley Freire do Nascimento

1945 - 2020

Deleu gostava de ouvir samba, forró, pagode e, principalmente, o coração dos outros.

Deleu, como era mais conhecido, não era o tipo de pessoa que se contentava com uma rotina pacata. Buscava sempre inserir o máximo de passatempos possíveis nos seus dias. “Meu pai não gostava de ficar parado. O ‘ficar parado’ deixava ele depressivo. Podia ser capinando o quintal, catando folha, ele tinha que estar em movimento.”, conta sua filha Angélica.

Antes da pandemia, Deleu fazia aula de dança de salão com o neto Tássio. Estava sempre muito animado, adorava ir a serestas e dançar ao som de um bom samba ou forró, mas suas habilidades não paravam por aí. Ele não podia ver um microfone nas festas que era o primeiro a se jogar na cantoria – e olha que ele se saía muito bem. Era o tipo de pessoa que alegrava a festa por sua energia contagiante. “Não me lembro de ter visto meu pai triste, só quando a mãe dele faleceu. Nem quando o Fluminense perdia ele se deixava abater.”

Assim como todos, Deleu teve que se adaptar ao “novo normal” e acabou descobrindo uma enorme paixão. "Antes, ele gostava de andar de bicicleta, de caminhar, mas aí por causa do diabetes, o médico o proibiu de sair sozinho. Ele teve que arrumar outro jeito. Depois que se aposentou – principalmente depois da pandemia –, ficou viciado em novela mexicana. Parecia vício de uma vida inteira. Ele sabia a hora certinha que começava. A gente até ficava zoando ele por causa disso, ele não ligava e ainda contava o que tinha acontecido na novela", conta Angélica.

Suas paixões dividiam-se em três: os filhos Sandro, Angélica, Elisângela e Andréia, os netos Tássio e Ana Laura e o time do coração: Fluminense. Deleu era “uma pessoa muito respeitadora, nunca falou um palavrão e nunca foi de bater nos filhos. Ele sempre foi de conversar, mostrar o que a gente fez de errado”, lembra Angélica.

Como avô, era o mais babão possível. “Quando o primeiro neto nasceu, meu pai ficou numa emoção danada. Uma lembrança engraçada e emocionante é de quando o Tássio ainda era pequeno e cantava a música chamada ‘O Neto’, do Dicró. Meu pai ficava muito emocionado e caía no choro”, completa.

Não perdia um jogo do tricolor carioca e tinha o seu próprio ritual para acompanhar cada partida. “Era tricolor doente, era a paixão dele. Assistia aos jogos pela televisão e, ao mesmo tempo, ouvia pelo rádio. Todo o jogo era assim”, relembra Angélica. O radinho era seu fiel escudeiro, não abandonava Deleu em nenhum momento. “De manhã ele acordava, pegava o rádio – era o companheiro dele, pra onde ia, levava o rádio –, aí colocava um pagode pra escutar e ia varrendo o quintal. Todo dia isso.”

“Meu pai era muito contador de histórias, adorava falar das coisas do passado dele. Tinha uma história que sempre contava de quando serviu no quartel – que era próximo da casa da minha avó, onde ele morava. Ele e uns outros colegas fizeram um buraco no muro para fugirem e irem tomar café na casa da minha avó, todo dia. Aí teve uma vez que o meu pai saiu, foi pra casa tomar café, ficou pro almoço, pro lanche da tarde até o coronel ir lá com os soldados e buscá-lo de volta pro quartel. E ele falava pra minha vó que o coronel tinha o deixado ir. Muitos anos depois, uma vez ele levou a gente no quartel e tinha mesmo a marca do buraco no muro.”

O verdadeiro significado da palavra amizade podia ser lido em Deleu. Ao longo de sua vida colecionou inúmeros amigos, os quais levava através do tempo e da distância. “Tinha amigos desde quando eu ainda era criança, da época de quartel, da escola de samba Portela. Aonde ia, a gente falava que ele tinha que ser vereador. Gostava de reunir os amigos, até tinha um time de futebol no Rio e depois que não pôde mais jogar, o colocaram como juiz para continuar participando. Sempre muito ativo, não ficava parado. Adorava reunir os amigos e ele era o cozinheiro.”

Um homem de hábitos simples que o enchiam de alegria. Angélica conta que “seu prato favorito era macarrão e farofa. Se perguntasse pra ele ‘Pai, quer que faça macarrão?’, ele respondia ‘É bom, né?’. Podia ter o que fosse pra comer, mas macarrão era com ele mesmo.”

Gostava muito de carnaval, sempre ia com Angélica para o bloco Cordão do Bola Preta, no Rio de Janeiro. Em contrapartida, se tinha algo que ele não gostava era de ir à praia. “Se o chamassem para a praia, virava inimigo dele. Ele tinha medo do mar”, relata Angélica.

Dono do coração mais carinhoso e leve, Deleu não era de julgamentos, muito menos de guardar rancores – com certeza, um dos grandes ensinamentos que deixou. “Meu pai nunca criticava ninguém, mesmo se a pessoa fizesse algo de ruim. ‘Se aconteceu, eu nem me lembro. Deixa isso pra lá. Pessoa faz, vai fazer de novo, mas não esquenta a cabeça’, sempre dizia,” conta Angélica.

Wanderley nasceu no Rio de Janeiro (RJ) e faleceu em Maricá (RJ), aos 75 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela filha de Wanderley, Angélica Freire do Nascimento. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Marina Teixeira Marques, revisado por Francyne Nunes e moderado por Rayane Urani em 19 de abril de 2021.