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Zamzam El Eter

1968 - 2021

Usou seu talento para ajudar outras mulheres a recuperarem a autoestima e para espalhar sua cultura e amor.

Na década de 70, a energia elétrica no Líbano era reduzida, fazendo com que grande parte das pessoas só tivesse seis horas de eletricidade disponíveis por dia. Na casa de Zamzam não era diferente e, com a impossibilidade de assistir televisão a qualquer hora, ela e os irmãos ─ onze, no total ─ costumavam escutar rádio, ouvir música e cantar bastante. De todas as suas atividades costumeiras, cantar e dançar eram as preferidas. Ela cantava tanto que fazia com que seus irmãos se zangassem, mas isso não a fez se distanciar do desejo de se tornar uma artista. Talento não lhe faltava: sua voz era suave como seu coração e alta como seus sonhos, sua dança era impecável. Entretanto, crescendo numa família tradicionalmente muçulmana, esse sonho era próximo do impossível. Quando Zamzam, com toda sua coragem, mudou-se para Brasília após se casar, pôde dar o primeiro passo rumo à conquista de suas aspirações.

Longe de casa, ela sentia muita saudade da família e precisou enfrentar céus e mares para cuidar dos dois filhos sendo mãe solo. Um grande obstáculo era o idioma, uma vez que ela havia chegado no país sem falar português, mas com sua capacidade autodidata e com a ajuda de amigos que fez no Brasil, Zamzam aprendeu a língua e começou a trabalhar como professora e tradutora, além de dar aulas de dança do ventre e vender comida árabe.

Por ter sido a única que seguiu carreira artística e que se divorciou, era considerada a ovelha negra da família. Entretanto, esse rótulo nunca a amedrontou e, de mãos dadas com sua força e talento, cantou, dançou e encantou incontáveis pessoas. Seus alunos, fossem os das aulas de dança ou os de língua árabe, amavam Zamzam e seu prazer em ensinar. Ela ajudava mulheres a reconstruírem a autoestima através da dança do ventre e ensinava sobre sua cultura com muita paixão.

Além dos sonhos, o grande combustível e alegria era o amor que sentia pelos filhos, os três eram inseparáveis. Amorosa e guerreira como só Zamzam sabia ser. Cuidou da família após o marido ir embora do Brasil e jamais deixou que algo faltasse em seu lar, principalmente carinho. Uma de suas maiores demonstrações de afeto era cozinhar; fazia pratos árabes extraordinários e ninguém podia visitá-la e sair sem comer alguma coisa. A comida era mais que alimento para o corpo, era também uma forma encontrada por ela para se reconectar com a família no Líbano e acalentar o coração com as memórias de casa. Sua comida preferida era um prato que sua mãe fazia, com inhame e grão-de-bico.

Nas horas livres, dividia-se entre assistir às séries disponíveis numa plataforma de streaming, praticar dança do ventre, ficar na companhia dos filhos e pensar no futuro. Zamzam planejava participar de espetáculos de dança e ansiava pelo dia em que iria visitar a família na terra natal para reencontrar suas irmãs e seus irmãos. Ela também tinha o objetivo de conseguir um emprego melhor e, por isso, estava concluindo a faculdade.

Zamzam tinha uma personalidade única e encantadora. Nunca saía de casa sem passar lápis nos olhos e batom, impulsionava outras mulheres na recuperação da confiança em si mesmas e defendia com afinco seus amigos e suas ideias. Toda a família leva sua história como uma inspiração e nunca se esquecerá do sangue árabe de Zamzam e do seu enorme coração brasileiro.

Zamzam nasceu em El Minieh (Líbano) e faleceu em Brasília (DF), aos 52 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pela filha de Zamzam, Samara El Eter El Sayed. Este tributo foi apurado por Rayane Urani, editado por Camilla Campos Trovatti, revisado por Lígia Franzin e moderado por Rayane Urani em 8 de junho de 2021.