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Abigail Pinto Magalhães

1931 - 2020

Viciada em novela, interagia com a trama: “Ih, já sei no que isso vai dar!”

A trama da própria história legitimou Abigail a prever as cenas dos próximos capítulos das novelas. Na sala de casa ou na cozinha da filha, era ela quem estava à frente da tv. Não tinha novela isenta dos seus comentários. Era: “Ihhhhh!”, em reprovação. Ou: “Olha só no que vai dar!”, acertando em cheio a previsão. Afinal, era ela protagonista de tantos dramas da vida real, que roteirista nenhum seria capaz de superá-la.

Sua rotina era de preparo: levantar de manhã, pegar um sol, tomar remédio - um monte de remédios, assistir aos programas de fofoca, ler jornal e, enfim, entregar-se às novelas. Todas as novelas. Abigail era viciada nelas. Mal sabia que era ela, ali, espectadora, um show à parte. Lembra a neta, Bruna, sobre vê-la interagindo com a tv: “Era muito engraçado quando ela fazia comentários!”

Antes de se entregar definitivamente às narrativas ficcionais, Abigail viveu uma vida inteirinha dedicada à realidade. Inclusive a sua origem, que marca a verdade histórica fundadora do Brasil: sua mãe tinha um cabelo tão grande, que arrastava no chão. No dia do casamento, teve que amarrá-lo na cintura. Índia, foi “caçada na mata para casar com um português”. Abigail adorava contar essa história. Afinal, ali começava também a sua. Da mãe, herdou a força para encarar os desafios como uma guerreira.

E foi, de fato, com toda a garra que ela passou pelo maior desafio da sua narrativa. Ao sofrer um infarto fulminante, Arlindo não deixou apenas a vida: mas também seus amores. Abigail, a esposa, e os seis filhos pequenos: Alberto, Solange, Nelson, Helio, Sérgio e Rosângela. Para manter a família, Abigail começou a lavar e a passar roupas para fora. Nessa época, nem ela poderia prever o resultado do seu esforço, anos depois: uma família extensa e com muito orgulho da matriarca.

Abigail tornou-se uma heroína. “Mulher de fibra”, define a neta. Um exemplo. Tanto que até as pequenas manias foram herdadas. Abigail tinha duas bolsas: uma para guardar dinheiro e documentos e outra, exclusiva para os remédios. Para onde quer que fosse, Abigail a levava a tiracolo. Bruna, ao abraçar a própria bolsa, se pega repetindo o hábito da avó, inclusive dentro de casa.

Os remédios tinham espaço reservado porque eram eles que garantiam o bem-estar de Abigail. O horário marcado para cada um deles era uma exigência para o controle do colesterol e do diabetes. Ainda que fosse pontual com a medicação, Abigail encontrava as brechas para escapar das restrições: adorava comer besteira! Escondida, pegava um pedacinho de salame… de bolo… de pizza… de pudim… de queijo… Tudo que não podia comer! Ainda que discreta, era quase sempre pega no flagra!

Avó de 13 e bisa de nove, a casa ficava cheia em dia de festa: no aniversário dela, nas festas juninas e também no Natal. Mas, no fim do ano, todos sabiam: ela não perdia o Especial Roberto Carlos, de quem era superfã.

Ao fim de cada dia, de cada encontro, sua bênção: “Deus te abençoe!” e também: “Vai com Deus!”. Era, ali, Abigail mãe, avó e bisa. Mulher. Conhecedora, acima de tudo, da vida real.

Abigail nasceu no Rio de Janeiro (RJ) e faleceu no Rio de Janeiro (RJ), aos 88 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela neta de Abigail, Bruna. Este texto foi apurado e escrito por Carolina Margiotte Grohmann, revisado por Lígia Franzin e moderado por Rayane Urani em 24 de junho de 2021.