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Adelino Moreira da Silva

1943 - 2020

Nada era obstáculo para que ele atendesse aos caprichos das filhas. Onde chegava, era acalento e paz.

O caminhoneiro amava tanto as cinco filhas, duas do primeiro casamento e três do segundo, que os retornos das longas viagens eram sempre algo especial. Ao serem avisadas que o pai estava a caminho, um misto de alegria e ansiedade tomava de conta dos corações das meninas. O retorno desse pai ao seio do lar tinha até o gosto especial de um tipo de biscoito: champanhe! Esse era o escolhido para presentear as filhas, comprados em algum lugar distante, durante a viagem, como uma doce lembrança que o acompanhava ao longo do caminho até o destino final: os abraços quentes e os rostos sorridentes das meninas.

Na visão das filhas, o caminhão era mais que um instrumento de trabalho do pai, era o lugar onde ele virava um gigante, especialmente quando chegava na escola para buscá-las. Ver o pai chegando naquele caminhão enorme enchia as meninas de orgulho e deixava todos admirados. Era também sua casa nos momentos de solidão nas estradas e nos momentos alegres de viagens com elas durante as férias.

As viagens com as meninas foram inesquecíveis e agora fazem parte das doces lembranças que povoam suas memórias, especialmente nos momentos de muita saudade. A essas histórias testemunhadas por elas somam-se outras tantas aventuras contadas pelo pai. Momentos de coragem, como quando ele teve a oportunidade de fazer um parto na carroceria do caminhão, algo totalmente inusitado. Histórias de assombração nas estradas, que deixavam todos arrepiados. E, por fim, as histórias tensas de momentos que deixavam Adelino apreensivo e preocupado, como quando o caminhão quebrava na estrada e o medo de assaltos e acidentes aparecia. No final das contas, sobreviveu a todos esses momentos e contou muitas histórias para a família, causando orgulho por seus feitos no exercício da profissão cheia de aventuras.

Sua vida era de serviço aos mais próximos. Nos momentos de folga, um de seus prazeres era ficar carregando as pessoas, fazendo favores aqui e acolá para os amigos, vizinhos e parentes. Foi o tio das caronas. Era o pai que mais gostava de levar e buscar as filhas e suas amigas nas festas e baladas. Fazia com alegria essa tarefa que é desagradável para muitos. O curioso é que era muito reservado, não demonstrava alegria, mas todos sabiam que podiam contar com ele e que Adelino estava feliz em ajudar, seu riso e seu sorriso contagiavam.

Não só de viagens vivia esse "pai herói". Era um homem apaixonado por pescaria, mas não qualquer pescaria. Nada de estar embarcado e com um monte de gente fazendo barulho. Tinha seu próprio ritual, diante do sagrado rio Araguaia, o seu favorito: chegava na beirinha do barranco, com enorme respeito, sentava-se sobre os calcanhares e, por horas em completo silêncio e contemplação, como um monge em meditação, esperava agachado a fisgada no anzol de seu peixe favorito, a jeripoca. Imagina se esse rito sagrado poderia se perder!? Como herança a seu afilhado e sobrinho Artur, ensinou, além do rito da pesca, tudo o mais envolvido na arte, como a técnica de acampar, a forma de "fazer comida na beira do Araguaia" e o amor ao rio que lhe trouxe mais que alimento ao longo da vida, foi fonte de paz de espírito e gratidão.

Ao longo da vida, foi se aperfeiçoando na arte de "fazer comida", como conta a filha Juliany: "No começo era bem lambão, o que deixava a mãe brava com a bagunça, mas depois foi aprimorando suas técnicas e, quando terminava, não ficava um garfo na pia". Diante de tanta dedicação era impossível que as filhas não se encantassem. Juliany, que aprendeu a cozinhar com o pai, diz que se espelha nele e adora cozinhar de forma muito organizada.

As mulheres sempre foram muito importantes na vida de Adelino. A relação dele com a mãe era de muito amor e cuidado. Ele cansou de dizer que não conseguiria viver sem ela, então, quis o destino poupá-lo dessa dor. Ambos eram pessoas de muita fé e partiram para o plano superior com a diferença de dois meses.

Adelino deixou a paixão pelo Araguaia no coração dos seus. Seu jeitinho quieto e discreto de ser, que conquistou a amizade de tantos, fará muita falta. A última viagem, que aparentemente não tem volta, será encerrada a cada abertura de pacote de biscoito champanhe e as filhas o reencontrarão com todo o amor que para sempre irá durar.

Adelino nasceu em Goiás e faleceu em Goiânia (GO), aos 77 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pela filha de Adelino, Juliany Camargo Silva. Este tributo foi apurado por Lila Gmeiner, editado por Ana Clara Cavalcante, revisado por Lígia Franzin e moderado por Phydia de Athayde em 3 de fevereiro de 2021.