Sobre o Inumeráveis

Adenilson Cordeiro Ferreira

1965 - 2020

Enquanto assobiava, consertava qualquer coisa, fazia artesanato e até começou a construir um barco.

Muito brincalhão com tudo e com todos, Canhã, como era chamado, tinha um jeito amoroso e amigo. Fumante como o pai, decidiu parar há cerca de trinta de anos e parou mesmo. Dizia à sua família que a vontade nunca havia acabado, por isso a controlava substituindo o cigarro por um cafezinho. Embora não mantivesse uma vida ativa e comunitária em uma igreja, conservava sua intimidade com Deus lendo a Bíblia e orando todos os dias pela manhã.

Cresceu no quilômetro 40 do antigo bairro de Seropédica, hoje município do Rio de Janeiro. Quarto irmão de sete, cuidou da mãe e dos irmãos mais novos quando enfrentaram um período difícil, por conta da doença psiquiátrica de sua mãe e da ausência de seu pai, que precisava trabalhar para manter a família. "Meu pai era um herói e o Canhã também", diz a irmã mais nova, Adriana. Durante a infância, morava com sua família em uma casa de estuque à luz de velas e, para distrair os irmãos, contava histórias de suspense e terror, fazia bonecos de papel e os projetava na sombra. "Ele era demais e terrível!"

Entre os apelidos Pintinha e Rosado, o de Canhã surgiu quando Adriana, ainda muito pequena, não conseguia responder às brincadeiras dele chamando-o pelo nome. "Até meus 19 ou 20 anos eu só conseguia dizer Canhã e ficou esse apelido, mas não sei bem o porquê".

Churrasqueiro da família, promovia encontros todo domingo no quintal de sua casa e logo depois reunia-se com seus irmãos para o café da tarde na casa de sua mãe. Apaixonado por pescaria, preparava os peixes que trazia para seus irmãos provarem. No Natal, reunia toda a família em sua casa.

Canhã não teve a oportunidade de completar seus estudos, concluindo apenas o ensino básico no extinto Movimento Basileiro de Alfabetização, o Mobral. Profissional de excelência, sonhava em viver da arte que produzia: criava obras reaproveitando material usado, construía peças de madeira, fazia pinturas e expunha seus trabalhos nas feiras locais de Seropédica; também os vendia pelas redes sociais e presenteava a família.

No terreno em que morava, entre as casas da mãe e de uma de suas irmãs, possuía um galpão enorme, ocupado por seus materiais e equipamentos; pelas obras de arte, terminadas ou em andamento; além de todas as suas coleções, com itens comprados em feiras, que ele fazia questão de mostrar ao receber visitas. "Dri, quando você se mudar daqui eu vou tomar seu espaço também", dizia Adenilson. Promessa que de fato cumpriu, alongando o galpão.

Possuidor de muitos dons, também trabalhava como eletricista, bombeiro, pedreiro, oleiro, marceneiro, soldador. Uma de suas últimas ocupações foi a produção de cones para o transporte de sementes. Considerado autodidata e dono de um olhar aguçado, conseguia reproduzir de tudo, de um simples brinquedo a guarda-roupas; até mesmo casas ele construía! Preocupado em deixar sua família em uma condição confortável, optou por um emprego formal, com registro em carteira de trabalho.

No quesito amor, conheceu sua esposa, Regina, no mesmo bairro de Seropédica, quando os dois tinham apenas 15 anos. Trabalhando juntos no ramo da cerâmica, namoraram durante sete anos, até se casarem. Logo depois, mudaram-se para o Paraná, e sem resistir à saudade, voltaram assim que souberam que o pai de Adenilson chorava diariamente por conta de sua partida. "Meu irmão sempre quis ficar conosco" conta Adriana. "Ele escolheu viver tudo conosco, até o fim".

Do convívio feliz de vinte e nove anos com Regina vieram seus dois filhos, Andrei e Yan. "A esposa e ele pareciam uma só pessoa", relata a irmã. Excelente também como marido, Canhã era cuidado com muito zelo por sua amada, da mesma forma com que zelava por seus filhos. Após descobrir os problemas enfrentados por um deles por conta de sua orientação sexual, enxergou além de suas convicções religiosas e cuidou para que ele fosse respeitado e amado. "Adenilson era amor", conclui Adriana.

Ele era também muito tímido. Quando uma de suas irmãs organizou um Dia das Crianças diferente, com a presença do Papai Noel e uma celebração de Ano Novo, foi vestido de Coelhinho da Páscoa e disse aos pequenos: "Me abraça para o tio não ficar com vergonha!" Os meninos, obedecendo, o agarraram, colocaram no carrinho de mão e o levaram até a festa. Com esse mesmo cuidado, quando os sobrinhos eram crianças e dividiam o quintal, Canhã intercalava passeios com todos eles aos finais de semana. Juntos, conheceram a cidade do Rio de Janeiro e os pequenos, agora adultos, guardaram na memória "o tio que os levava para passear". Comprou ainda um terreno em uma ilha, transportando de barco as madeiras necessárias para construir uma casa. Seu desejo era que os sobrinhos se divertissem com ele. "Ficou para cima e para baixo de barco", diz a irmã. "O sonho dele era ver os sobrinhos lá".

Seu forte impulso em servir ao próximo, às vezes, precisava ser controlado pela família. Com sua disposição natural para se doar aos outros, ajudou uma de suas irmãs, finalizando a obra de sua casa. "O que falta para você morar aqui?", perguntou. E diante da resposta dela, afirmou: "Ah não, tu vai mudar esta semana..." Uma de suas últimas metas era comprar uma estufa para um dos sobrinhos. Também estava construindo um barco para pescar com eles e os irmãos. "Por isso, temos um barco imenso de quase três metros no nosso quintal. Não sabemos como tirá-lo de lá, nem como terminá-lo... só ele sabia, estava tudo na cabeça dele".

Canhã não disfarçava sua cisma ao desgostar-se de algo. Ao chegar em um lugar e sentir que não fora tratado como deveria, seu cuidado em não magoar as pessoas fazia com que saísse aborrecido ao invés de criar discussões. Quando ficava chateado com os mais chegados, ninguém ousava procurá-lo. Sua ligação paternal com a irmã mais nova fazia com que ele a ouvisse — e acatasse seus conselhos — sempre que julgava estar errado. Canhã falava que era botafoguense para agradar o coração do pai, embora não gostasse de futebol. Depois da derrota do Brasil pela Alemanha em 2014, desgostou-se ainda mais e "parou até de assistir à Copa."

Apaixonado por música, aprendeu a tocar violão, mesmo sem ter estudado o instrumento. Por conta da veia musical, assobiava o dia todo, enchendo o quintal com o som de suas melodias. O canto era tanto que chegou a passar o costume adiante, para outros irmãos. Certa vez, para comprar uma vitrola antiga na feira, enfrentou um tiroteio em uma comunidade. Foi preciso se esconder em um bar, para evitar ferimentos. Aventura que, segundo ele, valeu a pena! Depois, comprou uma coleção de vinil do Roberto Carlos e disse ser um presente para a mãe — embora todos soubessem que era para ele mesmo... Estava sempre escutando música brasileira: Alceu Valença, Legião Urbana e outros artistas nacionais. A música predileta de Canhã era "Tocando em Frente", de Almir Sater.

Seu sonho, que era viver exclusivamente de arte, não pôde se concretizar. Mas seu legado de amor fez de Canhã o orgulho de sua família.

Adenilson nasceu no Rio de Janeiro (RJ) e faleceu em Volta Redonda (RJ), aos 55 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pela irmã de Adenilson, Adriana Cordeiro Ferreira da Silva. Este tributo foi apurado por Claiane Lamperth, editado por Tamires Borges, revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Rayane Urani em 11 de setembro de 2021.