Sobre o Inumeráveis

Afonso Augusto de Andrade

1953 - 2020

Sua casa era ponto de encontro para ver o Corinthians, jogar dominó e tomar a melhor vitamina de abacate.

A precisão, o rigor e a aparente infalibilidade das ciências exatas intimidam alguns e atraem outros tantos. Afonso fazia parte do segundo grupo. Administrador e economista, lidava com cálculos, projeções e planilhas com desenvoltura. Era metódico e mantinha seu quarto e suas coisas impecavelmente organizados. Até nos seus hobbies essa aptidão se manifestava: era apaixonado por dominó, um jogo que, embora simples, demanda um certo gosto pelos números, pela soma.

Mas talvez somar pessoas ao redor das partidas de dominó fosse o que mais o atraía no jogo. Gregário, tinha a casa sempre cheia de familiares e amigos. Era um dos "tios" favoritos, tanto por parte dos sobrinhos em si quanto pelos de coração: os amigos dos filhos.

Recorda-se a sobrinha Mirelli: “Quem vai me cobrar diária pensão completa? Quem vai conduzir o jogo de dominó? Quem vai fazer creme de abacate? Para quem eu vou ligar ou mandar mensagem com os horários das lives?”

A música era outra paixão, como atesta sua imensa coleção de CDs e vinis. Mesmo com o inegável componente matemático da música - e seus ritmos, andamentos e tempos -, parece ser de outra natureza a razão desse amor: seu gosto particular era totalmente pautado pela mais pura e incontida emoção. Afonso amava uma boa moda de viola e o sertanejo com a mais sentimental das letras. Nas viagens longas de carro, os filhos Daniela, Renato e Sylvia torciam o nariz a cada vez que entrava mais um Chitãozinho e Xororó, Almir Sater ou Leandro e Leonardo. Para acalmar os ânimos, o pai instituiu a democracia musical: cada filho também teria direito a escolher um lado de fita cassete por vez, como conta Renato Augusto.

O filho também observa: “Ele saiu do interior, mas o interior nunca saiu dele. Era uma pessoa que prezava os valores da roça - os encontros, estar atento às pessoas, cuidar da família, pedir a 'bença' da mãe e do pai”. Afonso viveu toda essa riqueza numa infância pobre no interior de Minas Gerais. Foi para São Paulo, capital, onde se formou em duas faculdades e fez três pós-graduações, sempre mantendo como bússola o orgulho de suas origens e a memória de sua mãe católica benzedeira e de seu pai que fazia parte da Folia de Reis.

Em São Paulo, conheceu sua companheira, Maria Lúcia, e ao seu lado passou os últimos quarenta e cinco anos de sua vida. Juntos tiveram os três filhos e dois netos. Filhos da Sylvia, Arthur, de 12 anos, e Lívia, de 4, eram seus xodós absolutos. Lívia, que adorava fazer cafuné nos cabelos do vovô, diz, diretamente do mundo de possibilidades ilimitadas da infância, que não vê a hora de inventarem a vacina para ele poder voltar.

Afonso vinha trabalhando na pesquisa da árvore genealógica da família, incluindo os familiares de ontem e hoje numa bela planilha de Excel. Católico devoto de Nossa Senhora, esteve na Catedral de Aparecida um dia antes do fechamento pela quarentena. Talvez tenha refletido, na Basílica, sobre coisas inumeráveis, imensuráveis, como todo o afeto que damos e recebemos em nossas vidas; certamente pensou nas pessoas que amava e fez por elas uma oração.

Escreve a ele sua sobrinha Mirelli: “Sabia que te amava, mas não tinha noção que era tanto. Ficam as lembranças de tudo que vivemos. Obrigada pelas melhores memórias de férias da vida. Por sempre nos receber com amor e alegria. Na alma há esperança, nos encontraremos. Te amaremos até o infinito".

Afonso nasceu em Três Pontas (MG) e faleceu em Americana (SP), aos 66 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pela sobrinha de Afonso, Mirelli Cristina de Andrade Dalonso. Este tributo foi apurado por Tatiana Natsu, editado por Tatiana Natsu, revisado por Lígia Franzin e moderado por Rayane Urani em 7 de outubro de 2020.