1954 - 2020
Como regulador de navios — o único no Brasil —, seu trabalho era requisitado mesmo depois de aposentado.
Descendente de italianos, Alcides foi o primeiro neto, muito amado e esperado por seus avós. Passou grande parte da sua juventude no interior paulista e sempre falava de suas recordações da casa dos "nonos", o seu lugar de ser feliz, de fartar-se de doces preparados por sua avó e de muito brincar com os tios que lhe ensinaram as atividades cotidianas da roça, como - por exemplo -, a ordenha das vacas.
Ainda jovem, rumou para a cidade de São Paulo à procura de uma vida melhor. Lá realizou diversos cursos que o qualificaram como Torneiro Mecânico. Foi uma época muito difícil, que ele venceu com extremo esforço. Por vezes, mal tinha como se alimentar ou realizava os seus cursos depois de um longo e exaustivo dia de labor. Porém, a força de vontade que possuía nunca o deixou desanimar.
Aos poucos, especializou-se como regulador de navios — função realizada apenas por ele em solo brasileiro. Por causa disso, viagens a trabalho faziam parte de sua rotina, bem como navios pertencentes a outros países atracavam no Porto de Santos para que Alcides fizesse a manutenção.
Alcides desempenhava suas atividades de modo tão primoroso que, mesmo após a sua aposentadoria, era costume seu ex-patrão chamá-lo para um trabalho ou outro.
Para além da vida profissional, formou sua família quando conheceu Teresa, graças a uma amiga em comum. Casaram-se e foram morar em São Vicente, onde viveram por trinta e seis anos e onde os filhos Bianca, Roberto (Beto) e Rodrigo, passaram a sua infância.
“Meu pai foi um marido exemplar e extremamente tranquilo: nas raras vezes em que os vi brigando, ele jamais discutia, apenas escutava. Verdadeiros companheiros, prezavam muito pela companhia um do outro”, relata Bianca. “Meus pais eram completamente consonantes na educação dos filhos: incentivavam a nossa individualidade, as nossas escolhas e nunca nos limitaram. Todas as vezes que o meu pai precisava chamar atenção, o fazia com uma longa e calma conversa.”
O jeito respeitoso com que Alcides tratava os filhos ressoava nas amigas de Bianca, que tinham muita admiração por Alcides. Ele, por sua vez, acolhia todas as moças como se fossem filhas, tornando-se, com o passar do tempo, um referencial para algumas delas.
Bianca fala sobre o pai com grande admiração e respeito: “Meu pai era uma pessoa extremamente calma e bondosa. Tudo que ele podia fazer por alguém, ele fazia, tendo ajudado de alguma maneira a todas as pessoas que passaram pelo seu caminho. Dizia que tudo o que se planta, colhe. Isto se mostrou verdadeiro porque toda a bondade que ele distribuiu com seus atos, ao longo da vida, retornou a ele em forma de amor e gratidão. Com o seu coração afetuoso, conquistou o afeto e a admiração de todos ao seu redor. Nunca ouvi ninguém falando nada de ruim dele".
Nas horas vagas, especialmente aos domingos, Alcides gostava de tomar sua caipirinha ao lado da esposa e ficar com ela conversando por horas a fio. Apreciava também ir ao centro espírita que frequentava para auxiliar na doação de alimentos a pessoas em situação de rua.
Com a memória repleta de lembranças, ela conta algumas delas: “A recordação mais marcante que vivi ao lado do meu pai foi quando me graduei. Fui a primeira pessoa das minhas famílias materna e paterna a se formar. Então, no decorrer da minha graduação, almejei muito participar da minha formatura para dançar com o meu pai. Consegui comprar apenas cinco convites, então levei dois grandes amigos que foram de extrema importância na época da faculdade e os meus pais. Durante a colação de grau e o baile de formatura, o vi, algumas vezes, debulhar-se em lágrimas de orgulho e felicidade por saber que a sua filha tinha se tornado professora”.
“Durante todo o tempo de estudos carreguei esse fato como um objetivo: eu o tinha como uma inspiração e sabia que se estava ali, grande parte era pelo esforço com que meu pai agiu durante toda a vida. O valor que meu pai dava aos estudos era tamanho que guardei todos os diplomas dele, os quais ele cuidava com imenso carinho, como se fossem relíquias.”
"Outra história que compartilho é de quando eu tinha apenas 6 meses de vida e o meu pai precisou trabalhar por um tempo em Manaus, enquanto estávamos em São Vicente. Naquela época, decidiu auxiliar financeiramente uma família manauara, que vivia em situação de extrema pobreza. Dizia que se via neles, já que sua infância tinha sido bastante humilde.”
Chama a atenção da filha também como seu pai se reconciliou com a avó, demonstrando sua grande evolução espiritual: “Durante a vida, meu pai possuiu uma relação conturbada com a mãe dele. Entretanto, quando ela estava prestes a falecer, penso que se arrependeu do modo com que tratou a ele e aos outros irmãos. Então, no dia do falecimento da minha avó, meu pai agradeceu a ela por todos os momentos, por todo aprendizado e pela oportunidade de terem sido mãe e filho. Neste dia, pude perceber o quanto meu pai era bondoso e evoluído espiritualmente”.
Alcides era uma pessoa de hábitos muito simples, que conservou alguns costumes do interior — modas de viola eram o seu grande apreço. A filha se recorda que, quando era pequena, ela e os irmãos iam para a cama dos pais logo que acordavam para assistir a programas de TV como "Pesca e Cia." e "Viola, minha viola" junto com ele.
Apesar de suas muitas realizações na cidade grande, Alcides carregava o grande sonho de voltar a morar em Fernandópolis, sua terra natal. Por lá, tinha planos de ter uma vida tranquila e conviver mais com os familiares e amigos, que sempre o recebiam com muito carinho e alegria cada vez que retornava à cidade.
Muito querido por todos, quando Alcides adoeceu, a filha recebeu inúmeras mensagens de pessoas externando uma real preocupação com o seu estado de saúde e contando algo de bom que ele tinha feito para elas.
“Ele também tinha o hábito de nos enviar mensagens diariamente, nos desejando 'bom dia', 'boa tarde' e 'boa noite'. Então, desde que ele partiu, os meus tios, irmãos do meu pai, fazem isso, trazendo conforto ao nosso coração”, conta a filha.
Quando perguntada sobre os ensinamentos que recebeu do pai, Bianca responde: “Um pai afetuoso, marido presente, amigo para todas as horas. Creio que grande parte da pessoa que me tornei foi graças aos ensinamentos e ao exemplo do meu pai. Nos últimos tempos, um de seus ensinamentos tem estado presente em minha vida mais do que nunca: mesmo diante das adversidades, não se deve perder a fé”.
Concluindo sua homenagem, ela relata: “Há algumas semanas, o pezinho de limão do meu pai deu dois limões. A saudade bate todos os dias e uma coisa tão simples já me fez lembrar dele e o quanto ele se faz presente nos detalhes, o que deixa tudo mais bonito, tudo mais encantador. Todas as vezes que me deparo com os navios atracados no porto ou em alto-mar, recordo-me do meu pai e tenho a sensação de que ele está viajando e logo voltará”.
Alcides nasceu em Fernandópolis (SP) e faleceu em Santos (SP), aos 68 anos, vítima do novo coronavírus.
Testemunho enviado pela filha de Alcides, Bianca Bellini. Este tributo foi apurado por Andressa Vieira, editado por Vera Dias, revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e Ana Macarini e moderado por Ana Macarini em 13 de maio de 2023.