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Alexandre Martins da Silva

1964 - 2020

A qualquer tempo e em alguma medida, encontrava maneiras de tornar os ambientes alegres e os afazeres cotidianos leves.

Quem o conhecia de perto sabia com que facilidade ele arrancava sorrisos e esbanjava carinho. Entre os papéis de filho, irmão, neto, esposo, pai e primo, bem como no ambiente profissional, sobrevivia nele um lado menino, moleque e engraçado.

Um traço marcante a tal ponto que a prima Amanda fala de forma carinhosa e leve sobre as palhaçadas do primo. Ela acrescenta que a brincadeira era tanta e feita com tamanha naturalidade, que ela tinha alguma dificuldade para saber quando ele de fato estava falando sério.

Toda essa alegria, era presença certa nas festas de Natal da família. Alexandre não perdia nenhuma oportunidade e ninguém escapava das piadas dele. Com comentários sempre na medida certa, ele preenchia o ambiente com momentos divertidos.

Foi o que aconteceu também durante duas mudanças de casa de Amanda. É que Alexandre era dono de um caminhão e fazia fretes e entregas para algumas empresas. A fim de ocupar os momentos ociosos e para atender aqueles que gostava, Alexandre fazia também o trabalho de mudanças.

Numa delas Amanda conta que em vários momentos Alexandre falava algumas coisas com tanta seriedade que ela ficava sem saber se de fato ele estava falando sério ou brincando. Quando a brincadeira se revelava, as gargalhadas ganhavam o ambiente, e na confusão de organizar as coisas, carregar e descarregar o caminhão, tudo ficava bem mais agradável.

Num outro momento, ele não aceitou lanchar quando Amanda foi até uma padaria e trouxe refrigerantes, pães e mortadela. Quase imediatamente Alexandre disse que era para deixar o lanche para o final “se não ninguém trabalha, vai ficar todo mundo devagar e o serviço não rende”. E assim foi feito. Ao final, ainda em meio à tradicional desorganização de uma casa recém-ocupada, Alexandre, Amanda e o esposo dela, Fernando, saborearam o lanche; que agora é uma das lembranças mais saborosas que a prima tem com ele.

Outra brincadeira dele com a prima era sempre dizer que não bebia de jeito nenhum. Aos poucos e observando mais atentamente, Amanda foi percebendo que era pura mentira. E que na verdade Alexandre apreciava consumir moderadamente bebidas alcoólicas.

O homem que teimava em ser um menino que não cresceu, parece ter puxado esse traço da sua avó Nadir. Quando os dois estavam juntos, a farra e a alegria estavam garantidas, uma vez que Dona Nadir e Alexandre, num movimento de apoio mútuo, valorizavam ainda mais o lado festivo um do outro.

Contudo, Alexandre teve uma vida árdua, cheia de altos e baixos. Com o falecimento da mãe, Dona Izídra, quando ele estava com apenas 10 anos, precisou assumir responsabilidades precocemente. Como segundo irmão mais velho, manteve gravada na memória a frase dita pela mãe: “Cuide de seus irmãos”. Ele tomou o pedido como uma missão, e esforçava-se o quanto podia para ser exemplo para todos na família. O filho Pedro conta que o pai “se cobrava muito, não se permitia vacilar, sempre pensando que havia quem dependia do caminho mostrado por ele. Diante dos desafios, em muitos momentos ficava apreensivo, carrancudo, às vezes mal-humorado... mas sei lá, creio que fosse efeito do medo de perder quem amava.”

O tempo trouxe para a vida de Alexandre a figura de Dona Ilda. Com a madrasta, ele foi capaz de construir uma relação afetuosa, onde, além dos carinhos mútuos, havia um sabor sempre desejado. O famoso e inconfundível empadão da Ilda era um dos pratos preferidos de Alexandre. Atitude compartilhada pela família, que, nos momentos de encontros festivos, já esperava pela iguaria. Bom dizer que o empadão também passou a ser feito pela irmã, Nadirangélica e igualmente muito apreciado por Alexandre e pelos familiares.

Como companheira de uma boa parte da vida, Alexandre escolheu Evani. Os dois formaram um casal cheio de paixão e durante os muitos anos em que estiveram juntos era evidente que a chama do amor sempre esteve acesa. Nos encontros de família, a cumplicidade deles era perceptível nas brincadeiras picantes que Alexandre fazia com ela.

No companheirismo mútuo, os amantes geraram Alessandra e Pedro. No olhar do filho Pedro, o pai é um exemplo de esposo. “Dava para sentir no ar a cumplicidade na relação dos meus pais. Bastava só um olhar e ambos já se entendiam sem dizer uma palavra. Se desdobravam juntos, para tudo, e sempre querendo um o bem do outro, o crescimento mútuo".

Numa relação franca, direta e aberta não havia assunto proibido com os dois filhos. O canal de comunicação estava sempre aberto e as partilhas entre eles acompanhou o crescimento de cada um. Como grande princípio ensinado pelo pai, os dois levam o exemplo de honestidade de Alexandre, que não perdia a oportunidade de ensinar isso a eles.

Num depoimento emocionante, emocionado e repleto de boas lembranças, o filho Pedro afirma que “com ele aprendi o que é ser homem de caráter! Tinha lá seus defeitos, mas quem não tem?! O importante é que as qualidades superavam tudo. Quem o conhecia apenas de vista podia até achar um cara ranzinza, mas quem se permitia chegar mais perto descobria ali um amigo sem igual".

Pedro fez questão de dizer que “como pai, foi o melhor que eu podia ter. Cumplicidade sem fim! Éramos mais que pai e filho, éramos amigos. Sem perder o respeito mútuo, sempre me tratou de igual para igual... Conversa séria quando era para ser séria e brincadeira quando o momento permitia. Seus ensinamentos, ainda que de um jeito um pouco bruto, sempre me guiaram pelo bom caminho. Um baita conselheiro, que sentia no ar quando algo não ia bem. Sempre ali, disposto a ajudar querendo o melhor para os seus.”

Saudoso, Pedro recorda que, na adolescência, os dois eram companheiros de boleia nos períodos de férias escolares. E assim, cada viagem naquele caminhão trazia uma nova história, em momentos que, na avaliação de Pedro, foram fundamentais para fortalecer a cumplicidade entre eles. Confessando que não era um “exímio copiloto”, Pedro lembra da estratégia do pai para tentar driblar os momentos de sono do filho, que se rendia a uma soneca depois do almoço enquanto prosseguia a viagem. Entre risos Pedro revela uma artimanha de Alexandre. “Meu pai era esperto... tinha seu macete: todo almoço vinha acompanhado de uma caixinha de goma de mascar; afinal, quem masca não dorme”.

O companheirismo entre pai e filho não tinha limite de quilometragem. Na memória de Pedro estão vivas as deliciosas aventuras por Minas, a terra natal deles. Eram viagens rápidas de algumas horas, até trajetos circulando por todo o Estado, durante seis dias.

Com Alexandre não tinha tempo ruim. Se fosse preciso transportar uma carga com urgência de Belo Horizonte para a também mineira João Pinheiro, ele sempre dava um jeito. Numa bela feita, ele e Pedro saíram da capital mineira no final da tarde, tendo cerca de quatrocentos quilômetros pela frente para que a encomenda chegasse a João Pinheiro ainda no mesmo dia.

Quase chegando no destino a fome falou mais alto e pararam em um posto para jantar, o que produziu um acontecimento engraçado. Devido à hora, só conseguiram duas marmitas de feijão tropeiro, preparadas na hora pela cozinheira do estabelecimento. Faminto, Pedro percebeu que em uma das marmitas havia um “torrão de feijão” que ele imaginou estar recheado de deliciosos torresmos. E foi logo dizendo a Alexandre que queria aquela marmita e o pai consentiu. Foram jantar na boleia do caminhão, e Pedro foi logo provar o tal “torrão de feijão”, que em vez de torresmos continha muita farinha de mandioca. Ao perceber o fato, Alexandre, que não perdia a chance de fazer piadas, sapecou em meio a gargalhadas: “Vai, 'zoiudo'; achou que ia levar vantagem e levou ferro”. Durante o restante do caminho, o acontecimento foi motivo para muitas risadas.

Com a filha Alessandra não foi diferente. Com seu jeito engraçado, na adolescência da filha, Alexandre fingia que ficaria muito bravo com os namorados dela. Ao contrário disso, o pai sempre acolheu e dialogou abertamente com a filha e seus namorados. Com seu habitual olhar atento, sempre que considerava necessário algum conselho, Alexandre expressava seu ponto de vista abertamente.

O modo tranquilo e sempre franco de Alexandre também esteve presente no seu relacionamento com os sobrinhos. Ele foi um tio conselheiro e em várias ocasiões chamava a moçada para uma conversa “olho no olho”, como define a prima Amanda. Sensível e cuidadoso, ele buscava conhecer o universo dos sobrinhos, não importava se ainda crianças ou jovens. Guardados nos corações deles, certamente estão lembranças de prosas, dessas que cada um sempre leva para toda a vida.

Importante dizer que os amigos também eram muitos. Provavelmente, Alexandre não tinha noção de como sua presença e seu jeito amigo foi marcante na vida de muita gente. Após seu falecimento, a família recebeu mensagens inesperadas, até de gente que nenhum familiar chegou a conhecer anteriormente. Mensagens de pessoas com quem ele conviveu por apenas metade de um dia ou menos ainda, em uma fila de descarga de caminhões, por exemplo, ressaltaram como ele era dono de palavras iluminadas e como estar próximo ao seu modo harmonioso trazia uma sensação de bem-estar. “Estou tentando descrever meu pai como um santo, após sua partida?” pergunta o filho Pedro a si mesmo. E ele mesmo responde: “Jamais! Isso ele mesmo dizia que não era. Conhecia suas mazelas e, muitas vezes, se chateava por tê-las, sempre dizendo para mim e para minha irmã ‘Vocês peguem de mim só o que é bom hein, não vão herdar meus defeitos!’.”

Voltando ao relacionamento de Alexandre com Amanda, ela faz questão de dizer que “ele é um irmãozão que a vida me deu. Na verdade, é o meu primo querido. Que vai deixar muita SAUDADE!”.

O fato de a palavra saudade ser escrita em letras maiúsculas não é nenhum equívoco ou exagero. Apenas reforça um sentimento e admiração mútua, que lembra um amor de irmãos. Alexandre sempre dizia que a prima era admirada por ser uma mulher muito estudiosa. Foi por isso que fez questão da presença dela na cerimônia online de formatura em Engenharia do filho Pedro, que foi um dos motivos de orgulho do pai, uma vez que o filho já estava empregado.

Outro sentimento alimentado por Alexandre era de uma gratidão eterna à prima. É que através de sua formação em Pedagogia ela viabilizou que o primo pudesse passar por atendimento psicológico em momento desafiador da vida. Ele sempre dizia sobre como a oportunidade proporcionada por Amanda, por meio do trabalho que realizava em uma ação social ligada a uma igreja, foi marcante em sua vida.

Alexandre segue vivo, nas postagens de “Bom dia!” feitas pelos irmãos mais novos, Cláudio e Nadirangélica, em substituição às que ele fazia a cada amanhecer. Na gratidão e lembrança de cada história, cada risada, cada conversa, cada conselho, gravados no coração de Pedro, que também guarda um desejo de Alexandre, de que as andanças de caminhão pudessem virar um livro, que já tem até o título, dado por ele: “Histórias de Boléia”. No sentimento da prima Amanda de que “Alexandre é uma pessoa muito engraçada; digo é, pois a luz dele ainda está por aqui a nos iluminar...”

"As tias vão ouvir a buzina do caminhão na rua e vão lembrar de você, nosso amado menino que cresceu..."

Alexandre nasceu em Belo Horizonte (MG) e faleceu em Belo Horizonte (MG), aos 55 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela prima e pelo filho de Alexandre, Amanda Priscilla Pereira e Pedro Lucas Diniz da Silva. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Ernesto Marques, revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Rayane Urani em 2 de maio de 2022.