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Altina de Carvalho Pinheiro

1930 - 2021

Fez colchas de crochê bem coloridas para cada um dos filhos e fez também o enxoval dos netos.

Altina era muito amorosa e, mesmo depois de órfã, manteve sua doçura. Quando jovem, era ela quem sentava Janis na janela da casa e penteava seus cabelos, enquanto ela mesma observava o movimento na rua.

Era em ocasiões assim que via passar Mário, conduzindo sua bicicleta. Os dois começaram trocando flertes e a história evoluiu para uma união que durou mais de setenta anos.

Altina sonhava em ser médica. Na impossibilidade disso, concentrou-se no ofício de cuidar da família. Em casa, ela deu à luz a todos os filhos: Eula, Elen, David, Evandro e Mário Júnior. Cuidava-os com carinho e com a sabedoria de quem sempre instruiu os filhos a não "aborrecerem" o pai com suas briguinhas, sobretudo em uma sexta-feira à tarde, depois de uma longa semana de trabalho para Mário.

Era uma mãe muito caprichosa, "muito mãe mesmo", conta a primogênita Eula. Altina cozinhava deliciosamente, alegrando os filhos com receitas como o arroz de forno, frango assado com maionese, lombo de porco assado com farofa de pêssego, ameixa e abacaxi. De sobremesa, preparava o melhor arroz doce do mundo, que sequer levava leite condensado.

Estava sempre atenta ao que se passava na escola e jamais os obrigou a fazer tarefas domésticas, mas os cinco aprenderam tudo mesmo assim. Era uma mãe educadora e que via na educação o futuro dos filhos. Antes do marido se aposentar, se mudou com seus meninos e meninas para Juiz de Fora para que pudessem ter educação universitária.

Em suas horas vagas, que eram raras, Altina gostava de ir à biblioteca para ler o que encontrasse, da Bíblia a Monteiro Lobato. Foi por isso que, quando bateu os olhos em uma boneca Emília, de amigurumi ― o nome é uma junção das palavras japonesas “ami” (malha ou tricô) e “nuigurumi” (bichos de pelúcias). Sua base é basicamente o tricô e o crochê, que permitem a confecção de uma série de bichinhos muito bonitos), Eula logo pensou em sua querida mamãe. Quando pode retornar à loja para comprar, a boneca tinha esgotado, mas a filha obstinada saiu de lá com um contato para encomendar a Emília e, assim, entregou a boneca e outros presentes de aniversário que havia combinado com Elen e Evandro. David, que mora nos Estados Unidos, enviou o dinheiro.

Quando esse presente chegou, Altina já havia perdido o filho caçula de maneira muito trágica. Comemorava 91 anos, entre a tristeza da perda e a alegria pela boneca que achou linda. Nesses tempos, era carinhosamente cuidada pelo marido Mário que, dia após dia, levava seu café da manhã na cama.

Com os filhos já bem criados, Altina não quis voltar a estudar, ainda que Eula tenha insistido muito. Quando pôde, abraçou a oportunidade de trabalhar com vendas de porta em porta e se realizou. Também se permitiu voar longe, viajando com a primogênita várias vezes para o exterior, onde acompanhou uma aula de artes. "Mamãe pôde aproveitar bem os passeios", conta Eula.

Em um desses passeios, visitando David, mãe e filho visitaram um antiquário e lá viram xícaras decoradas que lembravam Eula. Mandaram uma foto de toda a vitrine e a Altina pediu para a filha que pensasse em uma. Sem nenhuma surpresa, essa mãe que conhecia seus filhos como ninguém, comprou justamente a xícara que Eula havia escolhido como sua preferida.

Altina gostava de fazer crochê e fez lindas colchas-cobertor coloridas, tecidas ponto a ponto, com muito amor, para cada um de seus filhos. Além deles, os netos Pedro e Ana Luísa também têm. Aliás, Pedro foi o primeiro a nascer e ganhou um enxoval completo. Altina também foi avó de Elisa e Letícia, e foi a mãe das duas, Andréa, quem recebeu a tarefa de seguir com o crochê.

A fé, a alegria, a sabedoria de Altina eram contagiantes e memoráveis. Ela e o marido adoeceram na mesma época e, lembrando que Mário sempre temeu que a amada partisse primeiro, pediu aos filhos que não contassem ao pai sobre sua situação. Estiveram internados ao mesmo tempo e, mesmo sem poderem se ver, ela reconheceu a voz de Mário quando o ouviu chegar ao hospital.

Eula ressalta que, como Romeu e Julieta, Pedro e Inês, Abelardo e Heloísa, Mário e Altina partiram juntos ― morreram com poucos dias de diferença. Para a filha, esse não saber privou os pais de passarem "pelo dissabor de sentirem a ausência um do outro", e foi melhor assim.

Altina partiu depois do marido, levando consigo parte da alegria que distribuía gratuitamente todos os dias e deixando para a família imensa saudade.

O tributo ao esposo de Altina também está no Inumeráveis. Para conhecer a história, procure por Mário Braga Pinheiro.

Altina nasceu em Paraíba do Sul (PR) e faleceu em Juiz de Fora (MG), aos 91 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela filha de Altina, Eula Carvalho Pinheiro. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Larissa Reis, revisado por Bettina Florenzano e moderado por Rayane Urani em 24 de setembro de 2021.