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Alzira Paulino da Silva

1942 - 2020

Precisa ser muito Alzira pra vencer e criar os filhos sozinha em meio à fome e à pobreza.

Esta é uma carta de Mairla Freitas para a sua avó Alzira:

"Eu sempre vou me lembrar de você, vó.
Nas coisas simples como o café da tarde,
nas reuniões na nossa garagem depois do almoço,
nas nossas conversas antes de dormir...

Você me ensinou muita coisa vó, muita.
Uma coisa ruim sobre a morte são as lembranças que inundam a cabeça de quem ficou e dão um nó na garganta em momentos aleatórios.
Depois que você se foi, suas lembranças vêm como em um conta-gotas...
No meio do trabalho;
no fim da tarde;
quando eu apago a luz e tenho que chegar na cama.

As minhas férias na infância sempre foram contigo...
Lembra quando eu chorei para ir à sua casa?
Foi quando me deixei gostar de você.
Sua relação com minha mãe sempre foi complicada, cheia de sentimentos não ditos, consequentemente, não resolvidos.
E eu me lembro daquelas férias, a Marília (minha irmã) ficou na sua casa, eu fiquei na casa da minha prima.
Um dia percebi que ficar na sua casa, com você, amenizava a saudade que eu sentia da minha mãe, durante as férias.

Eu me lembro de você olhando a gente brincar na rede depois de nos ter alertado pra não cair.
E adivinha? A gente caiu.
E fingiu que nada aconteceu pra você não dizer que avisou, e poder continuar brincando.

Hoje eu me lembrei de você, porque o sol entrou pela janela aqui de casa e refletiu uma cor linda na parede, do mesmo jeito que acontece na cozinha da mãe à tardinha, e do mesmo jeito que acontecia na sua casa nas férias.
A cor do fim do dia lembra você.
Lembra família.
Porque é quando a gente fica em volta da mesa conversando e brincando, e era quando ouvíamos suas histórias.

Eu espero que a senhora saiba que eu sempre tive orgulho da mulher que a senhora foi.
Precisa ser muito Alzira pra vencer tudo que você venceu.
E eu espero ser metade da mulher que você foi.
Você superou tudo e, quando contava suas histórias, parecia não notar quão forte a senhora era.

Mas olha sua família! Ela existe por sua causa.
Você criou os filhos sozinha em meio à fome, pobreza e todas as outras dificuldades da sua época.
Eu tenho orgulho da senhora, vó.

E eu a perdoo por não ter sido a mãe que minha mãe mereceu.
Espero que tenha aproveitado os últimos anos ao lado dela.
Acho que foi a chance de vocês voltarem a ser mãe e filha.
Você foi uma ótima avó para as filhas dela e, conhecendo minha mãe como conheço, isso é mais que suficiente.

Que a senhora esteja em um bom lugar, cheio de tardes ensolaradas, cafés e boas histórias.
Se encontrar a bisa, fala pra ela que um dia a gente se encontra e eu leio mais histórias pra ela.

Tchau vó, até a próxima.

Alzira nasceu em Camurim (CE) e faleceu em Belém (PA), aos 78 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pela neta de Alzira, Mairla Freitas. Este tributo foi apurado por Carla Cruz, editado por Denise Stefanoni, revisado por Lígia Franzin e moderado por Rayane Urani em 17 de dezembro de 2020.