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Ana Romão Gomes

1949 - 2020

Na profissão, era enfermeira. Na vida, mãe de todos.

Em 70 anos, desde que nasceu no interior da Paraíba, não houve sofrimento capaz de derrubar a nordestina Ana Romão Gomes. E olha que a vida lhe colocou à prova. Enfrentou a dor da morte, como ela chamava, ao enterrar três, de seus oito filhos.

A tristeza pelas vidas interrompidas, despedidas indesejadas, Ana guardava para si. Quando alguém chamava “dona Ana?”, prontamente, a mulher de 1,5 metro de altura respondia com generosidade e um sorriso no rosto: “oi, minha filha" ou "oi, meu filho".

E são muitos filhos. Tinha como vocação cuidar das pessoas. Assim, ia acolhendo e adotando quem cruzasse seu caminho precisando de um amparo.

Um desses casos é o de Antônio, o homem que chegou cheio de tiros no hospital onde Ana trabalhava como enfermeira. Sobreviveu mais pela insistência dela, do que por qualquer crença da equipe médica.

Era seu início de carreira, na área da saúde. Antônio foi visitado e medicado rigorosamente por ela em todos os dias em que esteve internado na Unidade de Terapia Intensiva. Por ele, Ana até arrumou encrenca no hospital. Dado como morto, o homem pouca atenção recebia, a não ser de Ana, que chegou até a lhe dar medicamento escondido. A enfermeira só descansou quando ele cruzou da porta do hospital para fora, cheio de vida e saúde.

Nunca mais o viu, até um dia em que um de seus filhos, Senibaldo, levou Antônio para dormir na casa de Ana. O reencontro com o paciente emocionou ambos. E por lá ele ficou. Comprou um barraco do lado da casa de mãe Ana. Foi adotado por ela.

Seja para cuidar de um ferido ou pagar dívidas de mercado por seus familiares, em situação difícil, Ana estava sempre presente.

Para ela, todos eram da família. Criou os filhos e duas dezenas entre netos e bisnetos. Também era amada por toda a vizinhança e pelos amigos. Era referência em questão de carinho e generosidade, tinha sempre uma palavra ou uma solução para todos.

Além dos filhos, a vida lhe tirou o esposo, os pais e alguns irmãos. O luto, ela amenizava em plantões no hospital. Tinha amor pela enfermagem, curso que concluiu após muitas dificuldades. Trabalhou como gari para pagar a faculdade. Aos finais de semana, complementava a renda com faxinas, em escritórios de advocacia.

Na época em que varria ruas, seus filhos levavam marmita para ela. Ana tinha que comer rápido, porque o fiscal passava de tempos em tempos para garantir que não havia funcionário sentado. Terminava a refeição, tomava alguma coisa, enxugava o suor com o lenço amarelo que usava por baixo do chapéu e voltava ao trabalho.

Filha de agricultores, de uma família com 15 irmãos, Ana seguiu os passos dos mais velhos. Saiu de Monteiro, no interior da Paraíba, aos 21 anos, para buscar uma vida melhor em São Paulo.

Com os filhos criados, Ana sossegou. Era hora de cuidar de si.

De jeito meigo e vaidade ímpar, ela viveu o presente com intensidade, sem recusar convites para festas, viagens, passeios, um whisky ou um encontro com os amigos. O mais importante, nunca se negou a ajudar quem precisasse.

Ana nasceu em Monteiro (PB) e faleceu em São Bernardo do Campo (SP), aos 71 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela sobrinha de Ana, Marisa Lemes da Silva. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Larissa Paludo, revisado por Lígia Franzin e moderado por Rayane Urani em 13 de julho de 2020.