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Antônio Amaral Cavalcante

1946 - 2020

Poeta, jornalista e, sobretudo, uma pessoa à frente do seu tempo.

“É preciso ver a vida que se esvai como um córrego cristalino. A vida desce a montanha, mas ela não é a montanha; é um filete de tênues certezas arranhando a imensidão da história, descendo montanha abaixo, sempre célere pra baixo”. O trecho do poema sobre o luto, compartilhado em forma de memória numa rede social, no dia 15 de junho, já dava indícios do que viria a acontecer com o seu autor, pouco menos de um mês depois. O autor? Segundo o artista plástico e amigo, Anderson Camilo, “um dos maiores escritores que Sergipe já viu”.

Antônio Amaral Cavalcante, ou simplesmente Amaral Cavalcante, como era mais conhecido publicamente, foi um poeta, cronista e jornalista sergipano. Durante as décadas de 70 e 80, atuou como um dos maiores agitadores culturais no movimento da “Contracultura” no estado. Mais tarde, em 2011, já beirando os 65 anos, sua contribuição literária e artística seria reconhecida com a posse na Academia Sergipana de Letras (ASL), na qual passou a ocupar a cadeira de número 39.

Para os que conviviam com o poeta, a admiração por seu trabalho caminhava junto à fama de ranzinza e exigente. É com carinho que Anderson conta que teve o prazer de ter Amaral como um de seus padrinhos intelectuais. Para ele, o que muitos viam como ignorância, era, na verdade, uma forma de demonstrar afeto. Camilo dá risada e se diz saudoso ao relembrar a forma como o escritor “elogiava” os seus textos. “É, até que não está ruim” ou “você fez um bom trabalho, parece que ficou razoável” eram frases comuns de serem ouvidas por quem entregava alguma produção para a apreciação de Amaral.

A exigência profissional vinha acompanhada também de um gosto pelo trabalho. De acordo com o artista plástico, o poeta era o que, hoje em dia, chamaríamos de workaholic, chegando a trabalhar cerca de dezoito horas por dia. Foi com esse amor ao ofício que Amaral fundou, na década de 1980, o “Folha da Praia” (sim, no masculino mesmo), jornal alternativo de vanguarda. Era uma espécie de pasquim "serigyzado" que ele mesmo distribuía, arrastando o chinelo e com sua camisa colorida aberta, na Praia dos Artistas (Aracaju), aos jovens que ali passeavam.

A fundação do “Folha da Praia” traz consigo também o que Anderson considera as principais marcas de Amaral: o seu inconformismo e o seu senso crítico. “Na época que ele fundou [o jornal], a imprensa sergipana era dominada por grandes empresas e se limitava a escrever colunas sociais e notícias de fofoca. Amaral olhou para essa situação e quis fazer diferente, revolucionar”, explica. “Era definitivamente uma pessoa à frente do seu tempo”.

Mais recentemente, em 2012, Amaral foi também o responsável pela criação e edição da revista trimestral “Cumbuca”, publicada pela Editora Diário Oficial do Estado de Sergipe (Edise). À frente da publicação, ele convidou Anderson para ser o responsável pela capa da primeira edição. “Eu me lembro como ontem de Amaral dizendo que queria uma revista que mostrasse Sergipe para o restante do Brasil. […] Seu sonho era levar a cultura sergipana para todos os cantos do país com uma publicação com a qualidade da revista ‘Cult’, mas mostrando o que o nosso estado tem de melhor. E ele conseguiu”, conta o artista.

Além da saudade pessoal, de ver o sorriso largo de Amaral em cada uma de suas exposições, sempre alegre e com roupas coloridas, Camilo considera que é também uma perda para a população sergipana, ao que completa: “O mundo precisa de mais gente como Amaral Cavalcante. Sergipe precisa de mais gente como Amaral Cavalcante”.

Antônio nasceu em Simão Dias (SE) e faleceu em Aracaju (SE), aos 73 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pelo amigo de Antônio, Anderson José Silva Camilo. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Malu Costa de Araújo, revisado por Lígia Franzin e moderado por Rayane Urani em 20 de agosto de 2020.