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Aramis Francisco Mendonça de Moraes

1933 - 2023

Vaidoso, ele gostava de andar perfumado: se deixasse, tomava banho de água-de-colônia.

Ele nasceu em uma família humilde da cidade paraense de Itaituba. Boêmio por gosto e médico por profissão, mesmo depois de sua aposentadoria ele gostava quando alguém o chamava de Doutor Aramis, pois foi através da Medicina que ele deixou uma de suas marcas nessa vida.

No olhar da neta Lorena, “de forma geral, meu avô era extrovertido e alegre. A presença dele não era pesada, pois encarava a vida com leveza. Ele sorria com muita facilidade, principalmente quando tinha música, comida boa, cerveja e dominó”.

O filho mais novo de Seu Manoel e Dona Ondina dividiu as atenções e os cuidados dos pais com os irmãos Athos e D’Artagnan. De pronto é preciso dizer que os nomes dos três são uma referência aos personagens do livro “Os Três Mosqueteiros”, de Alexandre Dumas. Além dos três filhos homens, Manoel e Ondina cuidaram com carinho de suas duas filhas, Maria e Izete.

Voltando à questão dos nomes, Cláudia, uma das filhas de Aramis, explica que o avô Manoel “era um homem extremamente boêmio, romântico, que gostava de ler romances. Apesar de morar no interior há cerca de um século, tinha acesso a livros, gostava de literatura e era muito culto. Ele era apaixonado pela história dos três mosqueteiros e sempre dizia que, se tivesse filhos homens, daria a eles os nomes dos mosqueteiros”. Quis o destino que nascessem três filhos homens e Seu Manoel pudesse realizar o desejo alimentado por seu lado lúdico e sonhador. Cláudia acrescenta que, a depender de Dona Ondina — que era muito prática —, os filhos teriam nomes comuns como João, José, Maria “ou seja, ela não se preocupava com isso”. Assim, não se importou em deixar a escolha dos nomes dos filhos a cargo do marido.

Na infância, vivendo entre o pragmatismo da mãe e a ludicidade do pai, Aramis foi um menino inventivo, que pôde aproveitar as delícias de ser criança e fazer suas estripulias. Quando Dona Ondina pedia que fosse ao supermercado para comprar leite condensado ele sempre encontrava uma maneira de furar a lata e saborear um pouco do produto já no caminho de volta para casa.

A família viveu um momento muito desafiador após a morte de Seu Manoel. Diante de dificuldades financeiras, Dona Ondina e os filhos precisaram mudar-se para a cidade de Maracanã, no litoral paraense. Foram tempos de dinheiro e até comida contada para que todos pudessem seguir em frente. O importante é que, com a colaboração de todos, aos poucos a situação foi melhorando.

Também dessa época ele trazia na memória histórias e lendas da Amazônia. A neta Lorena recorda uma das lendas contadas pelo avô. Na história, “um tio dele foi caçar onça na floresta e deu de cara com um mapinguari, um macaco gigante com um olho só. Para escapar da criatura e arrefecer o susto, o tio buscou refúgio numa árvore frondosa da floresta”.

Na adolescência, Aramis virou uma espécie de fiel escudeiro do irmão Athos. Nos momentos em que se envolvia em alguma confusão, o irmão sempre contava com a ajuda de Aramis que, estando por perto, não poupava esforços para protegê-lo. Houve inclusive uma situação em que os dois foram perseguidos por alguém que empunhava uma peixeira na intenção de ferir Athos depois de uma briga.

O tempo foi passando e o jovem Aramis, na busca por estudo e uma profissão, mudou-se para Belém. No primeiro vestibular, foi aprovado na Universidade Federal do Pará no curso de Farmácia. Iniciada a jornada acadêmica, Aramis percebeu que não era exatamente aquela a carreira que gostaria de seguir e participou de outra seleção, na mesma universidade, para o curso de Medicina.

Formado, a especialidade escolhida foi Ginecologia e Obstetrícia. Após muitos anos como médico, conta Lorena, “a cada esquina da cidade ele tinha uma paciente ou filho de alguém que ele tinha feito o parto”. Pelo cuidado e generosidade com os quais exercia a profissão, ele foi ganhando a admiração e o respeito de suas pacientes.

A dedicação e competência do Doutor Aramis era tanta que, um pouco mais tarde, foi professor na Universidade Federal do Pará. Com isso, ganhou também o respeito de muitos colegas e mais um motivo para ser tratado como Doutor em suas andanças pela capital paraense.

Entre as muitas histórias vividas na medicina, uma permanece na memória da neta Lorena. Certa vez, durante a ditadura militar, chegou até o Doutor Aramis uma mulher que precisava retirar uma bala que estava em seu corpo. Mesmo sabendo que ela estava sendo procurada pelos agentes do governo militar, Aramis não teve dúvidas em fazer o procedimento cirúrgico. Durante a cirurgia constatou que a moça tinha uma tatuagem na coxa. Assim, no dia em que contou esta história para Lorena deu também um conselho de que ela não fizesse tatuagens em seu corpo, “pois isso poderia facilitar que eu fosse identificada e perseguida por alguém”.

Também naqueles tempos sombrios, lançando mão do respeito que conquistara como médico, noutro momento, Aramis resgatou um dos irmãos de uma delegacia local. Destemido, seguiu para a porta da delegacia. E só saiu de lá quando conseguiu liberar o irmão. Orgulhosa, Lorena destaca que essa era uma das marcas do avô. “Quando via alguma injustiça ele sempre se posicionava”, diz a neta. No sentir de Lorena, esse traço da personalidade dele, em alguma medida, revelava a personificação e atualização da figura do cavaleiro Aramis que servia ao rei do conto de Alexandre Dumas.

A generosidade do Doutor Aramis, que atravessou o tempo e toda a sua prática como ginecologista e obstetra, gerou uma situação bastante peculiar e curiosa. Mesmo quando já tinha uma situação financeira estável ele não abria mão dos atendimentos numa clínica localizada no bairro do Jurunas. Uma região de periferia onde moravam pessoas empobrecidas e marginalizadas de Belém. Lorena ressalta que “ele não deixava de atender lá porque tinha pacientes que precisavam dele”. Certa vez, transitando pela região, ele foi abordado por alguns homens que anunciaram o assalto. Contudo, um dos assaltantes percebeu que o alvo da ação era o ginecologista de sua esposa e convenceu os demais a desistirem do assalto.

Outro momento de muita generosidade e acolhimento também associado à medicina envolveu Maria, irmã de Aramis. É que, conforme os costumes da época, mulher não deveria estudar. Contudo, mirando-se no exemplo do irmão, Maria desejava muito poder ser médica. E só conseguiu realizar esse sonho com o apoio de Aramis e Dona Rosa para que pudesse estudar e tornar-se pediatra.

Vaidoso, Doutor Aramis andava sempre de branco. Dona Rosa o incentivava a andar sempre bem arrumado. No toque final, antes de sair, usava seus perfumes. Os mais caros ele ganhava de presente de algum filho. Como conta Lorena, ele “gostava de andar cheiroso e receber elogios. Tomava banho de colônia, se deixasse”.

Bem vivo na memória de Lorena está o gosto do avô por “sentir-se médico”. Sabendo disso, muitas vezes, ela aproveitava algum momento de conversa para puxar algum assunto associado à profissão. Mesmo quando ela sabia a resposta para alguma questão relacionada à saúde, perguntava. No ato de responder, além das informações, vinham junto a felicidade e orgulho do avô por sentir-se valorizado com a pergunta.

Porém, como já ficou evidente, a vida de Aramis não era somente a medicina. Sua vida particular também foi marcada por momentos de muito encantamento, alegria e afeto. A começar por sua relação com Rosa Maria, que perdurou por longos sessenta e seis anos.

Tudo começou num mês de junho, numa festa de São João. Os dois, que sempre gostaram muito de festas, bailes e danças, tiveram seu primeiro encontro em meio a um grande número de pessoas que, independentemente de classe social, frequentavam a festa. E foi assim que o rapaz, oriundo de uma família humilde, viu pela primeira vez a moça de uma família tradicional de Belém.

Pouco a pouco o amor foi brotando no coração dos dois. Ele com 23 anos e ela com 15. Até que os novos encontros, passeios e idas ao cinema começaram a incomodar alguns familiares de Dona Rosa, pois ela estava andando com um rapaz pobre. Nas voltas que o amor é capaz de dar, com o tempo, as coisas se ajeitaram e eles puderam se casar.

Na juventude, o casal era bastante boêmio e não perdia uma festa. Além disso, organizavam festejos também na casa onde moravam. Com a chegada dos filhos Aramis, Miguel e Cláudia, as festas passaram a reunir os amigos deles, pois Aramis e Rosa gostavam de ter a moçada sempre por perto.

Quando falava de sua relação com Dona Rosa, Aramis recorrentemente fazia alusão à canção “Último Desejo”, de Noel Rosa. Além da inevitável referência ao dia em que se conheceram, a letra também fala de duas facetas diferentes do mesmo amado, característica comum a muitas relações amorosas. Na longa trajetória do casal não foi diferente. Com os modos daquele tempo em que o machismo era muito mais forte e com os desafios inerentes a qualquer relação, mas também na curtição “de bailes, festas e boleros”.

Além de Lorena, Aramis teve as netas Luísa, Maria Eduarda e Ana Carolina, e o bisneto Pedro. Curiosamente e em alguma medida influenciadas pelo amor do avô pela medicina, as que já definiram sua área profissional optaram pela área de biomédicas. Lorena é Bióloga, Luísa é Psicóloga e Maria Eduarda estuda Medicina.

Entre as netas, a que teve um relacionamento mais cotidiano com Aramis foi Lorena. É que Miguel, o pai dela e filho do meio, sempre morou com os pais Aramis e Rosa. Expressando uma saudade respeitosa e amorosa, a neta e muitos da família guardam o conselho do avô de que ela “nunca pare de estudar”.

Um outro ensinamento dele também acompanha os familiares. Aramis sempre dizia que independentemente do que cada um escolhe como profissão na vida o importante é esforçar-se para ser muito competente. Na fala dele “mesmo que alguém seja um trabalhador de carvoaria, se buscar ser o melhor, ninguém vai questionar sua competência”.

Com seu sotaque paraense e uma fala cheia de afetividade e gratidão Lorena recorda de muitos momentos da rotina do avô. Um deles era a dedicação dele em ficar atento aos editais de concursos públicos e sugerir a Lorena que se inscrevesse. Noutros dias adquiria materiais preparatórios para concursos e dava de presente para a neta, com o incentivo de que a neta estudasse.

Ao longo do tempo, Aramis ia com certa frequência ao Rio de Janeiro visitar o filho mais velho, que herdou do pai o nome e o gosto pela medicina. As estadias na capital carioca eram momentos de matar a saudade e de falar sobre o trabalho do filho como cirurgião. Aramis ficava orgulhoso ao perceber a competência do filho e o modo também generoso e atencioso como o filho tratava seus pacientes.

As idas ao sítio da família, que ficava perto de Belém, e as viagens de férias para as cidades paraenses de Mosqueiro e Salinas, eram momentos divertidos. Os banhos de rio em Mosqueiro e de mar em Salinas produzem muitas memórias em todos da família. Cláudia conta do prazer do pai em estar no sítio onde ele e Dona Rosa plantaram muitas árvores frutíferas. Uma atenção especial era dedicada a um pé de jenipapo à espera da queda dos frutos, pois, como explica Cláudia, “jenipapo você não colhe, espera cair”. É que Aramis gostava muito do licor de jenipapo feito em casa por Dona Rosa.

Nos finais de tarde a casa do sítio era tomada pelo cheiro do chá de capim-santo preparado por Dona Rosa. Para acompanhar, Aramis comprava beijo de moça, uma espécie de biscoito fabricado no Pará, feito com tapioca, levemente adocicado e que se desmancha na boca. E a família se reunia para saborear o lanche. Cláudia conclui dizendo que assim eram os finais de tarde no sítio, definindo o momento como “a cara do papai, capim-santo era a cara do papai”.

Ainda no universo dos sabores há muitas lembranças deliciosas de Aramis. Ele apreciava com muito gosto a cozinha regional paraense. Um de seus pratos prediletos era a maniçoba. O preparo exige cuidado com as folhas tóxicas de maniva, que precisam ser cozidas por sete dias para tirar o veneno. Em seguida são adicionados charque e chouriço, dando ao resultado final uma semelhança com a feijoada, onde a maniva substitui o feijão. E Aramis se fartava de maniçoba, acompanhada de farinha e arroz — como é tradicional.

Por falar em farinha de mandioca, Aramis apreciava muito a produzida em Bragança, cidade próxima a Belém. Com uma peculiaridade muito divertida. Com o mesmo talher que usava para se alimentar ele pegava a farinha direto na farinheira da mesa. Sabendo disso, todos de casa evitavam comer da farinha que ficava no pote e buscavam uma pequena porção do alimento na despensa da casa.

Às segundas, quartas e sextas-feiras era dia de ir à feira. Aramis comia muitas frutas e aproveitava a feira para encher a fruteira. Na sacola, de acordo com a estação do ano, ele trazia banana, manga, sapotilha, jambo, bacuri, abiu, ata, morango, acerola, mamão, mangustão, biribá, caqui e muitas outras.

Além das frutas vinham também bacalhau e peixes frescos, recém-pescados nos rios amazônicos, tais como pirarucu, filhote e pescada-amarela. Na cozinha de casa, eram cuidadosamente preparados pelas cozinheiras, orientadas por Dona Rosa. Os pescados normalmente eram servidos junto com tucupi, base de várias comidas paraenses, geralmente usada como caldo. Aramis apreciava tucupi combinado com pato, frango, peixes — principalmente pescada-amarela, o seu predileto — e também camarão. Lorena complementa que “lá em casa, a gente gosta muito de peixe no tucupi, pato e frango. Quando sobra frango do dia anterior e tem tucupi em casa, a gente mistura os dois e vira um prato gostoso”.

No horário das refeições, no que dependesse de Aramis, era momento de sentar-se à mesa; e se nenhum dos moradores estivesse em casa, principalmente na hora do almoço, ele sempre chamava alguém para lhe fazer companhia. Muitas vezes enquanto almoçava, entre uma garfada e outra, com sua voz potente, Aramis cantarolava bem alto algum bolero. Entre os prediletos ele estavam “La Malagueña” e “Solamente una vez”.

Cláudia ressalta que Aramis sempre gostou de fartura na mesa. No entendimento dela, provavelmente ele sentia necessidade de dar à esposa e aos filhos o que ele e os irmãos não puderam ter, durante algum tempo, depois da morte do pai, Seu Manoel. Na casa da família, em Belém, qualquer pedinte que batesse à porta era acolhido e alimentado.

De manhã bem cedo, Aramis gostava de ler jornal. O responsável por trazer a publicação era o filho Miguel, que também lia diariamente as notícias, mas sabia muito bem que o pai deveria ser o primeiro a folhear o jornal. Mesmo quando a visão já não estava boa, Aramis não abria mão desse hábito, pois gostava de estar bem informado. Foram várias as vezes em que a família teria preferido que ele não soubesse do falecimento de algum amigo e ele soube pelas notas de falecimento publicadas pelo diário.

À noite era momento de jogar dominó ao som de uma variada trilha sonora que mudava de acordo com os gostos de Aramis e de quem mais estivesse na sala. O certo é que o repertório variava desde Dona Onete, cantora paraense que ele tinha muito orgulho de ter conhecido em um de seus shows, até Lady Gaga. A parceira de todas as horas era a nora Letícia, sempre respeitando o ritmo dele. Quando Aramis estava sem paciência ou triste pelo falecimento de Dona Rosa, as rodadas de dominó eram mais rápidas. Mas em muitas outras vezes eles ficavam até altas horas jogando, ouvindo música e conversando sobre tudo. Lorena explica que “era momento de relembrar desde histórias da época de garoto do meu avô, até fofocas e comentários sobre política”. Depois da aposentadoria, Dona Ana, que por mais de vinte anos foi secretária no consultório do Doutor Aramis, tornou-se outra parceira de dominó. Foram tantos anos trabalhando com ele que, juntamente com a família, ficou decidido que ela seguiria participando dos cuidados com Aramis até o final da vida. E as partidas de dominó eram um desses momentos de atenção.

Uma das últimas informações dadas por Lorena sobre seu querido avô fala de um orgulho que a neta guardará para sempre consigo. Com ar de reconhecimento e felicidade ela disse: "Sinto muito orgulho do meu avô pelo fato de ele nunca ter caído na conversa de Bolsonaro”.

Aramis, que via de regra chegava em casa cantando alguma canção, segue vivo, na saudade de Lorena dos tempos em que acordava cedo para tomar café da manhã junto com o avô. Na coletânea das muitas fotos três por quatro que guardam as marcas do tempo em seu rosto. Nos livros de medicina dos quais ele tinha muito ciúme e seguem bem cuidados na mesma prateleira do quarto dele. Nos estudos de medicina da neta Maria Eduarda. Na gratidão de inumeráveis pacientes e de seus filhos, que ajudou a nascer. Nas partidas de dominó que Dona Ana segue jogando com seus parentes usando o dominó herdado de Aramis.

Aramis nasceu em Itaituba (PA) e faleceu em Belém (PA), aos 89 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela neta de Aramis, Lorena Martins Bitar de Moraes. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Ernesto Marques, revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Ana Macarini em 31 de julho de 2023.