Sobre o Inumeráveis

Arlindo de Jesus Sá

1947 - 2020

Quando ações valem realmente mais que palavras. Com dedicação e amor, deixou lembranças gravadas na família.

Desde pequeno ajudava o pai na padaria e confeitaria. Aos 10 anos, com o falecimento do pai, tornou-se descascador de castanha-do-pará, na usina de castanhas. Desde então, ganhou mãos ásperas e ressecadas, que levaria para o resto da vida.

Foi jogador de futebol no time do Fast Clube de Manaus. Sempre teve paixão por futebol e, acabou unindo as paixões, quando, entre as traves de um gol, encontrou sua companheira de vida. Fátima era goleira de um time feminino e conheceram-se em um jogo que rendeu 49 anos de casamento. Dessa união vieram os filhos Jairo, Ale e Arlindo Junior; os netos Alan, Vitória, Davi, Daniele, Larissa e Maria Carolina (esta sob a tutela deles).

Da década de 70, até 2003, teve sua própria oficina, muito famosa na Praça 14, em Manaus. Depois disso, ele, que não conseguia ficar sem trabalhar e desconhecia a palavra preguiça, foi com a esposa à missa de São José, pedir a graça de um emprego. Em 11 dias, foi chamado pela Empresa Dantas Transportes, onde trabalhou por cinco anos.

"Meu pai Arlindo era um preto, de 1,70 m e 70 kg. Sofreu muito preconceito racial, mas tinha suas convicções e não se deixava influenciar. Apesar disso, inevitável era a tristeza ou a raiva que o abatia em alguns momentos. Por isso, e por sua falta de oportunidades na vida com relação aos estudos, pedia e incentivava os filhos e netos a estudarem. O pai dizia: 'Seu marido é seu estudo!' Devo muito a eles dois, que fizeram tudo por mim", conta Maria Carolina.

Era um homem de incontáveis manias, mas tentemos entregar as mais curiosas: acordava muito cedo. Se tivesse compromisso às oito da manhã, às cinco já levantava e entrava direto no banho. Por falar nisso... não gostava de tomar banho no banheiro! É que, no pátio, ao lado de fora da casa do Sr. Arlindo, tinha um chuveiro onde ele preferia tomar banho e, outra mania: gostava de depois fazer musculação.

"Vaidoso e cuidadoso... Amava hidratante! Quando ele foi para o hospital, deixei com ele um de morango, para evitar o ressecamento da pele. Também era doido pelo perfume Patchouli. Dizia que perfume caro era besteira e esse custava dez reais e era ótimo! Outra mania: enxaguante bucal — Tinha que comprar um toda vez que ia ao mercado", entrega Maria Carolina.

No quesito compras, ia demais ao supermercado: era a preocupação de quem já passou fome e que não queria ver os seus sentirem a mesma dor. Costumava falar que queria uma geladeira farta. A filha diz que a família desconfia que, o excesso de idas ao mercado, pode ter sido o responsável por ele ter sido contagiado pelo vírus.

Maria Carolina conta, com admiração, que o pai era uma pessoa "linda no assunto futebol". Ele era vascaíno, mas como o gosto pelo esporte era genuíno, não era um torcedor fanático. Assistia a todos os jogos, torcendo por qualquer outro time que tivesse um bom jogador em campo. "E assim ele me fez gostar de futebol e quase fiz jornalismo esportivo, por causa dele. Mas ele achava que era perigoso e eu fui amadurecendo a ideia. Acabei me formando em Educação Física, com mestrado em Saúde. Agradeço todo o apoio, tanto financeiro, quanto emocional e psicológico aos meus pais e avós. E ele se orgulhava muito de eu ter concluído os estudos."

Religioso, era devoto de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Às refeições, sempre fazia o sinal da cruz no início e, ao final, agradecia com uma oração: "Obrigado Senhor, obrigado pelo meu pão de cada dia. Nunca deixe faltar na minha casa, dê moradia, o meu comer, o meu beber, o meu pão de cada dia. Nunca deixe faltar'!"

Gostava muito de churrasco, cerveja e música: samba e pagode, principalmente Jorge Aragão. Muito alegre, participava sempre das festas da empresa. Tinha um grande amor em ajudar as pessoas. Pena ter deixado um sonho por realizar: conhecer o Rio de Janeiro.

"Um ser lindo e justo, mas humano... um defeito? Ser estressado. Quando eu tentava acalmá-lo era pior ainda. Ele ficava mais irritado, dizendo que tinha muitas preocupações", conta Maria Carolina, que acrescenta: "Ele não era de abraços e beijos, como bom capricorniano. Mas demonstrava seu amor em ações. Nunca esquecerei quantas vezes ele salvou minha vida. E do momento em que, treinando para prova da carteira de habilitação, ele me desafiou. Eu, nervosa, com ele ao lado, 'estanquei o carro' 20 vezes. Ele disse que eu poderia repetir isso cem vezes, mas o levaria ao fim da rua. Que eu teria que dirigir e não ele! Chorei, mas consegui. Isso foi bem recente e nunca esquecerei."

Levou 51 dias para o amor os unir de novo. Fátima estava na UTI devido a um câncer, vindo a falecer e Arlindo partiu em seguida. A família ficou sem os dois em matéria, mas em energia terá para sempre a presença e a lembrança de tantos momentos marcantes, como disse Carolina.

A filha lamenta que tem um sonho de cursar Medicina e eram eles que iriam entregá-la o diploma. Agora, mesmo tendo muita gente ao seu lado, diz saber que eles irão estar em energia, com certeza. E agradece: "Pai, muito obrigada por tudo! Lembro de tantos momentos nossos, agora eternizados... como a nossa música, lembra? 'Eu que tanto me perdi, (...) Não me esqueci de quem eu sou, e o quanto devo a você'. Te amo!"

Arlindo nasceu em Manaus (AM) e faleceu em Manaus (AM), aos 72 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela filha de Arlindo, Maria Carolina Oliveira de Sá. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Denise Pereira, revisado por Lígia Franzin e moderado por Rayane Urani em 28 de junho de 2020.