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Armando Antônio Marques Silva

1960 - 2020

De tanto chamar seus pequenos pacientes de jacaré, ele acabou se tornando o “Doutor Jacaré”.

No universo particular, um companheiro e pai exemplar. No trabalho como médico oncologista infantil, no olhar da mãe de um de seus pacientes, um profissional completo, humano, habilidoso, extremamente competente e “uma pessoa iluminada”. Com estas palavras talvez seja possível definir, ao menos em parte, a pessoa de Armando.

Nascido numa família simples, ele guardava consigo muito de suas origens. Sempre enaltecia o avô, de quem herdou o nome, e a avó Dona Alzira. Impossível não recordar o grande desejo da avó Alzira de que o neto se tornasse médico. Quando ele passou no vestibular e iniciou o curso de medicina, Dona Alzira já era falecida. Contudo, do lugar onde estava, ela acompanhava o empenho nos estudos de Armando e no dia da formatura, orgulhosa, deve ter ficado numa felicidade só.

Mesmo abalada pela perda de Armando, a esposa Solange trouxe um pouco do “companheiro” no universo pessoal e familiar. Ela conta que ele foi uma “uma pessoa muito quieta, sensata, autoritária em algumas situações, mas certo de que estaria fazendo o bem”. Relembra também o papel importante desempenhado por Armando como “pai exemplar, tudo para os filhos” e que colocou a educação de Rafael e Gustavo em primeiro lugar. Pelos filhos, Armando fazia tudo o que podia e, em algumas situações, até o que não podia.

Seguindo os mesmos caminhos do pai, Gustavo formou-se médico. E como sintetiza Solange, “com o exemplo do pai se dedica e se mostra humano.” De onde estiver, certamente, Armando segue admirando o filho médico. A exemplo do pai, Gustavo é muito estudioso e, como diz Solange, “tem conhecimento ao ponto de ensinar a muitos colegas velhos e novos na profissão”. Por sua vez, Rafael, que também escolheu se profissionalizar na área de biomédicas, formou-se em Medicina Veterinária e com a mesma determinação do pai segue conquistando seu espaço.

Passemos então à medicina, dimensão que ocupou boa parte do tempo da vida de Armando. O que aqui vamos contar aconteceu no Instituto Domingos Boldrini, instituição voltada ao trabalho de tratamento de crianças com câncer. A aluna e depois colega de trabalho Lucileide é quem trouxe à tona a rotina do lado profissional de Armando.

Os dois se conheceram quando ela fez residência no Instituto. Lucileide tem na memória o dia da entrevista de admissão, quando pela primeira vez teve contato com Armando. Ela explica que, naquele tempo, a formação e atuação dos médicos oncologistas transitava também nas áreas de coleta de medulas para exames e hematologia. Dizendo de forma alegórica, ela sintetiza que Armando ajudava na formação de “médicos com muitas habilidades e funções”.

Para que se tenha uma dimensão da intensidade da relação profissional entre Armando e Lucileide, foram dezoito anos trabalhando juntos no tratamento de muitas crianças. Ao longo desse tempo, cuidaram e trataram de crianças com doenças oncológicas, cuja cura, de modo geral, está na casa de 70 a 75%.

Em outra dimensão, Lucileide explica que, nos corredores e beiras de leito por onde ela e Armando passavam, o trabalho com oncologia revelou uma faceta surpreendente. Apesar de lidarem com crianças, era possível ter a sensação de que estavam lidando “com espíritos velhos, que ensinavam muito para a gente” apesar da dor, do choro, das brigas, cirurgias, do passar mal por conta da quimioterapia. E que foram muitas as vezes em que tudo terminava com sorrisos, beijos e abraços.

Dono de um coração que rapidamente se entregava a seus pacientes, Armando sempre trabalhou muito. Nas conversas durante os estudos de casos e nas caminhadas pelos corredores do hospital ele revelou a Lucileide que não acreditava em Deus. Ele sempre se perguntava “como era possível que o criador permitisse que uma criança tivesse câncer?” No seu jeito humano ele confessava que em alguns momentos era muito difícil aceitar ver o que acontecia com alguns pacientes.

Nas avaliações diárias de crianças internadas, Armando chamava a todos os pacientes de “Jacaré”. Ele ia chegando e perguntava para o menino ou menina “e aí Jacaré?” E de tanto fazer isso, passou a ser chamado pelas crianças de “Dr. Jacaré”.

Com seu jeito humanizado de cuidar, o “Doutor Jacaré” estava atento também ao emocional dos pacientes. Quando percebia que algum deles estava abatido ou muito dependente da mãe, dizia sem medo de errar “ô moleque, para com isso e vê se faz as coisas mais sozinho”.

Houve um caso de uma criança com tumor no sistema nervoso central em que a atuação de Armando chamou a atenção de Lucileide. Era uma criança muito brava e às vezes impaciente, mas ao mesmo tempo “muito gostosa de conviver”. Armando chegava e com seu jeito brincalhão ia quebrando a irritação dele. “E esse bico aí?”, perguntava. E sempre chamando o paciente de jacaré, conseguia que o mau humor e a braveza fossem amainando. Lucileide conta que nesse caso, a impaciência do menino tinha a ver com a perda de algumas habilidades, afinal “criança não anda, criança corre”, explica ela. O certo é que Armando, na brincadeira e na conversa, conseguia que ele fosse ficando calmo.

Armando era um médico sincero e às vezes precisava ser um pouco “bravo”. Outro caso marcado por muita espontaneidade e afeto infantil aconteceu logo depois do falecimento de Armando. Um dos pacientes internados vestiu uma roupa de dinossauro para ficar parecido com um jacaré e ficou esperando Armando para a quimioterapia, na expectativa de brincar com ele. Desde aquele dia em que Armando não chegou, o paciente sempre usava a roupa de dinossauro nas sessões de quimioterapia. No relato da criança, enviado pela mãe através de rede social, juntamente com uma foto da fantasia, o menino diz que “o doutor Armando era bravo, mas me ajudou a ser mais forte, porque eu era muito mole”.

Outro caso, do tempo da residência médica, do qual Lucileide se recorda com uma certa felicidade pelo aprendizado que proporcionou, foi o de uma menina da cidade paulista de Piracicaba. Apesar das explicações de que as chances de cura eram de 70%, a mãe persistia aflita e desanimada. Foi quando de forma surpreendente a criança disse a ela “ô mãe, está querendo que eu morra? Não está ouvindo o que eles falaram?”

Naturalmente, houve situações em que não foi possível a cura. E o bom humor de Armando durante o tratamento dá sinais de que fez escola. A mãe de um paciente ao saber do falecimento do médico disse que ele e o filho "devem estar brigando lá em cima”.

Agradecida, Lucileide relata uma conversa que teve com a esposa de Armando. Entristecida pela perda do professor e colega de anos de trabalho ela disse a Solange que não sabia se iria conseguir trabalhar sem o Armando. A resposta de Solange foi categórica “Vai sim. Você aprendeu muito com ele. Passe adiante o que aprendeu”.

Durante todo o tempo de parceria, Lucileide avalia que foram dois os principais aprendizados que teve com Armando. O primeiro, foi o de estudar, aprender e ter segurança no conhecimento para, através dele, trabalhar e buscar alcançar o máximo possível de resultado. O segundo, a ler as crianças nas suas necessidades e vontades. “Muitas vezes uma demanda é dos pais e não da criança. E a gente precisa ouvir e respeitar o que a criança sente e deseja”, explica Lucileide. Ela conclui dizendo que é fundamental educar o olhar para ver “não a criança que chora, mas uma pessoa, que precisa ser tratada e cuidada”.

Armando segue vivo, na prática cotidiana da oncologia infantil por Lucileide. No exercício das profissões dos filhos, que escolheram a mesma área de conhecimento do pai. Nas memórias carinhosas e reservadas de Solange. E em tantos pacientes que, curados, podem seguir vivendo por aí.

Armando nasceu em São Paulo (SP) e faleceu em Jundiaí (SP), aos 60 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela amiga e parceira no trabalho em oncologia infantil de Armando, Lucileide Aparecida Delgado. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Ernesto Marques, revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Rayane Urani em 5 de setembro de 2022.