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Arnaldo Fernandes da Silva

1966 - 2021

Ensinou a filha a andar de bicicleta, fazendo-a acreditar que seu feito promoveria a vitória do Palmeiras.

Ele gostava muito de comentar sobre a infância vivida em Água Boa, Minas Gerais, junto com os irmãos, mais ou menos todos de idade aproximada. Pelo que contava, eram crianças muito arteiras, que aprontavam muito e, apesar de terem vivido com poucos recursos materiais, foram crianças muito felizes.

Mudou-se com a família no começo da adolescência para o Paraná, e desse estado para Jarinu, interior de São Paulo, onde viveu até o final da vida. Alguns irmãos dele já moravam nessa cidade e ele foi juntar-se a eles em busca de melhores condições de vida e trabalho.

Tantas mudanças roubaram-lhe os costumes mineiros, pois, por mais engraçado que seja, era um mineiro que não gostava de pão de queijo.

Viveu durante 29 anos com Kely, uma moça que conheceu em uma festa na sua cidade, no ano de 1992. Em poucos meses, já estavam casados. Foram pais de Jéssica e Patrick, o caçula.

A filha mais velha conta que: “Em seus 28 anos exercendo o papel de pai, sempre desempenhou a função com maestria; era usualmente bastante rigoroso em relação à nossa criação, comportamento e notas na escola, mas era tudo muito bem ponderado. Ao mesmo tempo que fazia exigências, sabia ser brincalhão e descontraído. Podia ser bravo às vezes, mas na maior parte do tempo estava fazendo piada e brincadeiras. Nos divertíamos muito. Ele era bastante caseiro, não costumávamos fazer viagens (era bem raro). Uma coisa que ele sempre fazia muita questão de fazermos juntos, era almoçar ou jantar, todos sentados à mesa para que pudéssemos conversar.”

Ela o descreve como “um ser de luz com uma passagem quase meteórica pela Terra. Veio para ensinar como viver, no sentido mais amplo da palavra: curtindo cada momento, se divertindo, sendo verdadeiro, esforçado e conquistando sonhos. Meu pai conseguiu deixar marcas profundas principalmente em mim e em meu irmão, acerca de como devemos levar nossa vida e correr atrás dos nossos projetos”.

Ele era uma pessoa muito brincalhona, que estava sempre sorridente e dispista a fazer piada de tudo. Acordava rotineiramente de bom humor, e isso só foi diferente quando, após a morte de um de seus irmãos, experimentou um período de depressão que, com a ajuda adequada, conseguiu superar.

Sobre o gênio brincalhão do pai, Jéssica comenta: “Esse comportamento não era só com os filhos, mas sim com toda a família e amigos. Era difícil ficar sério onde estava o Arnaldo, pois sua energia contagiava a todos”.

Arnaldo batalhou desde criança pela sua sobrevivência e, profissionalmente, teve muitas ocupações. Uma delas, em especial, marcou bastante sua vida, a de vidraceiro. Trabalhou durante muito tempo nesse ramo e tornou-se conhecido na cidade por conta do seu carisma e capricho. A outra, abraçada nos últimos anos de vida, transformou-se em sua verdadeira paixão: a agricultura, que o levava a exercer a paciência da espera entre plantar e colher.

Foi um torcedor de futebol diferente do convencional; não era muito fanático, preferia assistir aos jogos em casa e não nos estádios e, se possível, em completo silêncio. Com esse perfil, a filha não sabe explicar como ele começou sua paixão pelo Palmeiras; não perdia nenhum jogo e permanecia completamente atento à TV quando o time jogava. Gostava também de jogar futebol amador aos domingos de manhã com os amigos e isso para ele era uma lei a ser cumprida.

Jéssica rememora histórias que para ela se tornaram inesquecíveis: “Uma história que me marcou muito e é super especial: eu demorei muito tempo para aprender a andar de bicicleta sem rodinha, pois tinha muito medo e uma coordenação motora péssima. Conforme já contei, meu pai era palmeirense e sempre fez questão de passar essa paixão para mim. Como forma de me incentivar, ele me disse: “Se você conseguir andar de bicicleta sem rodinha hoje, o Palmeiras será campeão.” E assim eu me esforcei muito, muito, até conseguir. E por incrível que pareça o Palmeiras realmente ganhou o campeonato: A Libertadores de 1999!”.

Ela conta que via no pai um sonhador que conseguiu realizar os próprios sonhos e os que possuía em relação aos filhos: "Graças à Deus, meu pai conseguiu realizar boa parte dos sonhos que tinha. Como disse, ele era uma pessoa que sabia viver. Teve um casamento feliz, constituiu uma família, pôde ver os filhos se tornarem boas pessoas. Além disso, um sonho material que ele conseguiu realizar e o deixou verdadeiramente feliz, foi comprar um carro do modelo que sempre quis um ano antes do seu falecimento. Sempre foi um grande incentivador dos meus projetos e acredito que me ver formada, na minha colação de grau da faculdade, também foi um sonho dele realizado”.

E as lembranças dos gostos, hábitos e preferências de Arnaldo brotam em profusão: “Músicas da Marilia Mendonça me lembram muito ele porque era sua cantora preferida. Duplas mais antigas me remetem à infância com meu pai, como João Paulo e Daniel e Leandro e Leonardo.”

“De comida, sempre lembro de uma farofa de ovo que ele fazia, e era sensacional!"

“O hábito da TV ligada o tempo todo também era uma de suas marcas, pois ele sempre estava assistindo algo: futebol, jornal, filme... Hoje em dia ninguém mais assiste TV em casa.”

“Ele tinha uma coleção de fuscas de brinquedo na estante da sala. Ainda mantemos no mesmo lugar e estamos aumentando o número de carrinhos, como provavelmente ele faria”.

Não poderia ficar esquecido o principal ensinamento deixado por Arnaldo para Jéssica: “Meu pai me incentivou muito a estudar, desde sempre. A garra e determinação que tenho hoje para alcançar meus sonhos e objetivos através do estudo e esforço, veio muito da força que ele me deu. Quero poder usar o meu conhecimento em saúde pública e vigilância sanitária para compartilhar informações e ações de saúde, não só no contexto de pandemia, mas também em qualquer outra circunstância que leve uma pessoa a adoecer ou sofrer agravo, ajudando as pessoas a se cuidarem. E sei que, de certa forma, meu pai estará comigo”.

Arnaldo nasceu em Água Boa (MG) e faleceu em São Paulo (SP), aos 55 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pela filha de Arnaldo, Jéssica Fernandes da Silva. Este tributo foi apurado por Andressa Vieira, editado por Vera Dias, revisado por Ana Macarini e moderado por Ana Macarini em 15 de dezembro de 2023.