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Aurora Castilho Berto

1936 - 2021

Concluiu os estudos já adulta, e coroou a conquista sendo a primeira com carteira de motorista da vizinhança.

Uma rainha! Nada a descreria melhor. Era a matriarca da família, que botava ordem na casa como ninguém. Assim era a Vó Aurora, contam os netos, Felipe e Thais.

Ela era o centro da casa, o porto seguro do vô, das filhas, dos netos e até dos genros. Seu sítio era seu reino, onde ela comandava, protegia os seus e cuidava de cada detalhe, fosse na arrumação das camas, sempre perfeitamente esticadas — sem uma dobra sequer nos lençóis; nos banquetes dos almoços de domingo, sempre acompanhados de uma sobremesa, ou resolvendo as brigas de alguém.

Jogava milho pras galinhas, recolhia os ovos, molhava seu jardim de rosas, dálias e os vários beijos, alimentava os gatos e os cachorros. Tinha um coração gigante a Vó Aurora, e colocava amor em tudo que fazia, distribuindo vários beijos para todos.

Seu coração era tão grande que ia além de suas fronteiras. Nele, cabiam os irmãos, cunhados, sobrinhos, amigos, conhecidos e até desconhecidos. Sempre ajudou a todos que precisavam, desde os mais próximos até os mais distantes.

A vida nunca foi fácil pra Aurora: trabalhadora, desde muito nova, ainda solteira, cortava cana, cuidava da roça, criava vaca, porco e galinha. A vida de sítio, de roça, a acompanhou, após o casamento. Mudou-se para o sítio de seu amado, onde permaneceram juntos até o final da vida de cada um.

Conseguiu completar o primário só depois de adulta, mas foi pioneira ao ser a primeira a ter carteira de habilitação, na região. “O que tem que fazer, tem que fazer”, é o que ela dizia.
Criou suas três filhas ajudando a tocar a venda no sítio e chegou a ser merendeira na escola. Além de trabalhar fora, sempre cuidou, de forma impecável, da própria casa, até onde o Alzheimer permitiu.

Para os netos, ela foi muito mais que avó: foi mãe, madrinha e dona do abraço mais quente, mais macio e acolhedor do mundo; aquele abraço que sintetizava o significado de “casa”, de lar.

Religiosa, todo sábado tinha compromisso marcado com a missa na Capela. Era devota de Nossa Senhora Aparecida e sempre teve a imagem da Santa em seu quarto. Em sua última visita à Basílica assistiu a missa aos pés do altar.

Vó Aurora foi o amor em forma de leite quente, antes de dormir; da macarronada aos domingos; do frango caipira que tinha sido criado ali no terreiro mesmo; do pavê de amendoim; do pote de sagu de vinho, pra família toda, e o potinho separado, feito com groselha, pra neta que achava o gosto do vinho muito forte. Era a especialista do bolo com cobertura de chocolate em casquinhas e de tantos outros — inclusive da massa que sobrava na tigela e era sempre motivo de briga pra ver quem ia raspar.

Vó Aurora era o amor também presente nas tranças, que ela adorava fazer nos cabelos das netas. Seu cuidado se revelava nas idas ao supermercado, com a lista de compras sempre pensada no que todo mundo gostava. O seu capricho amoroso era sentido nos pijamas de flanela que ela mesma costurava, nas toalhinhas que adorava bordar com nomes e desenhos, e tantas outras formas de amor que ela soube demonstrar tão bem.

Casada por mais de cinquenta e sete anos, ela cuidou do marido até quando pôde e, quando não pôde mais, foi ele quem cuidou dela. Não desgrudavam: aonde um ia, o outro ia junto; o que um comia, oferecia pro outro, e o que um fazia, o outro fazia também.

Ela passou tantos anos cuidando dos remédios de hipertensão dele, para não esquecer, e quando a memória dela começou a falhar, foi ele quem começou a cuidar das próprias medicações e das dela também. Se ela se irritava, ele se irritava, mas se ela estava feliz, ele ficava mais feliz ainda. Era lindo de ver.

Recentemente a Vó Aurora, às vezes, esquecia as feições de algumas pessoas, mas bastava falarem quem eram e ela sempre se lembrava, tamanho o carinho que tinha por todos, mesmo quando a memória já não ajudava na identificação de cada um.

“Ah, quanta saudade! Somos muito gratos por termos tido a honra de conviver com a senhora até os seus 84 anos. Sabemos que agora, mesmo de longe, também não vai ser diferente, vai continuar assim pra sempre, nos olhando aí de cima, juntinho do vô. Começamos nossas vidas com ela cuidando de nós, e terminou a dela com todos os nossos cuidados, cheios de carinho e amor, como ela nos ensinou.”

Aurora nasceu em Piracicaba (SP) e faleceu em Piracicaba (SP), aos 84 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pelos netos de Aurora, Felipe Berto Altarugio e Thais Fernanda Berto Altarugio. Este tributo foi apurado por Rayane Urani, editado por Rosa Osana, revisado por Ana Macarini e moderado por Rayane Urani em 11 de agosto de 2021.