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Carlos Alberto Gonçalves Veloso

1963 - 2021

Gostava de levar café na cama e deixar bilhetes com recadinhos em datas comemorativas para os familiares.

Carlos tinha dois filhos adultos, dos quais era próximo e dividia a paixão por filmes e futebol, ou melhor, a fanática torcida pelo Atlético Mineiro. O pai tinha tudo do Time do coração e fazia questão, além de assistir aos jogos com os filhos em casa, com direito a gritaria na sala, de comprar os itens para eles também. Até avental do Time Carlos usava e dizia que era "para homenagear o Galo na massa".

No fim da década de 90, o Policial Civil e Instrutor de Direção, ensinou mais do que Leis de Trânsito. A condução, além das vias, foi a do amor e Ana Carolina tornou-se sua esposa por dezenove anos, sua companheira de uma vida. "Nossa convivência sempre foi muito respeitosa, sadia e de cumplicidade. Principalmente nos momentos mais difíceis e nas decisões aflitivas como nos assuntos de doença. Eu costumava me desesperar muito, contudo meu marido me ensinou realmente a tentar enxergar as situações penosas de outro modo. Carlos foi um homem forte, que lidava com as adversidades com uma sabedoria ímpar."

Em sua vida adulta travou com dignidade e perseverança, uma batalha com a hemodiálise. Quando teve o diagnóstico, a esposa conta que Carlos ficou triste, mas nunca se abateu. "Uma característica dele, era aceitar tudo com muita positividade e riqueza de espírito, o que eu não entendia bem, porque lamentava demais pelo sofrimento dele, entretanto ainda tento aprender com suas atitudes. Tínhamos muitas limitações, como por exemplo, quando havia uma reunião em família. Sempre saíamos cedo, independente da hora que chegássemos. E ainda assim, quando chegava em casa, cansados às vezes, Carlos, sem reclamar, fazia sua diálise e dizia: "Vou fazer tudo direitinho". Não se descuidava do seu problema.

Após uma longa espera e três fertilizações in vitro, Carlos e Ana Carolina engravidaram. Em 2015, Ana Luiza chegou, já muito desejada, o pai e a menina tornaram-se a razão de viver um do outro. Carlos foi para a caçula um verdadeiro pai "babão". Muito presente, buscava-a na escola, comprava vários DVDs para assistirem, iam ao cinema, a parques temáticos, cozinhavam e riam muito juntos.

Ana Carolina sente muita falta da relação amiga que tinha com o marido. "Sem ele ao meu lado, até as coisas mais simples ficaram mais difíceis. Carlos era um grande companheiro, amigo, o pai da minha filha e quem me ajudava em todas as decisões. Tenho uma questão pessoal, principalmente em tomada de decisão, o que me deixou dependente dele. Certa vez ele comentou: "Nossa, você não sabe pedir uma pizza? Tem que perguntar o sabor que eu quero? Pode escolher." No luto enfrentei essa e outras dificuldades, todavia procuro em todos os momentos complicados, pensar 'como ele agiria' e sigo em frente.

São tantas as memórias que marcam a vida do casal: o casamento, o nascimento da filha, uma promessa a cumprir para a Santa da qual eram devotos: Nossa Senhora Aparecida. Até lembranças engraçadas são inesquecíveis, como a da lua de mel, rememora Ana Carolina: "fomos jantar, bem arrumados, só faltou terno e gravata. Chegando no restaurante, era "Noite Havaiana" e todos estavam de chinelo, colar havaiano e trajes típicos, tirando fotos. Comemos rapidinho, sem nos aproximar. Na noite seguinte, pensamos que já havíamos ido chiques e então fomos de chinelo. Ao chegar, nova surpresa: "Noite Italiana" e todos de traje a rigor. Mais uma vez ficamos sem participar do evento."

Por duas vezes Ana Carolina iniciou uma série de 36 exames para viabilizar a doação de seu rim ao marido. Estava na metade dos exames, quando, em 2019, Carlos conseguiu um transplante, com mais esperança, logo disse sobre a filha: "Acho que vou ver essa menina viver até os quinze anos". Um de seus sonhos era ter uma caminhonete e no ano seguinte, comprou um Kombi, que para ele era o primeiro passo. Ana Luiza continua cobrando da mãe a caminhonete.

À época do transplante, foi curioso, pois tanto Carlos, quanto a esposa usaram máscaras. Viram a estranheza de várias pessoas, que por vezes pensavam ser algo contagioso, quando eles só estavam se protegendo. Cerca de um ano depois, o mundo todo foi obrigado a usar máscaras.

Com a pandemia, ele praticamente realizou outro de seus sonhos: morar no sítio. Todas as quartas-feiras Carlos dirigia 40 km para ir alimentar os cachorros, aguar as plantas e cuidar de tudo. Ele fez uma mini horta do jeito que pôde, era um prazer aquele lote. Aos fins de semana era a vez de curtir com a família o lugar desejado. A esposa relembra com saudade: "Recebíamos meus pais, assistíamos muitos filmes e ouvíamos músicas. Além de nos divertir com o karaokê e comer bem as comidas que meu marido preparava. Ele fazia muitos pratos diferentes, mas abusava mais dos deliciosos ensopados e da inesquecível carne assada com maionese ou do churrasco, que ele amava.

A esposa trabalha em uma penitenciária para adolescentes, então o casal optou por se distanciar por precaução. Em função da comorbidade, com as aulas suspensas de início e depois on-line, Carlos mudou-se para o sítio com a filha. A esposa fazia chamadas de vídeo diariamente e visitava-os aos finais de semana. Apesar da saudade, via feliz a relação de pai e filha tão próxima, que agora sente o quanto dói em sua pequena. Fosse nas ligações ou em fotos que Carlos enviava, Ana Luiza estava sempre curtindo as comidas que comia ou fazia com o pai, cuidando dos animais ou então brincando no meio da terra. "A única coisa que ele ficava devendo, era lavar o cabelo da Ana. Às sextas eu chegava e tinha que cuidar dos cachos enroladinhos e embaraçados da nossa menina, porque ele deixava 'dentro da touca'. Dizia que não lavava, porque não conseguia arrumar depois".

Esse paizão estava realizado e feliz com toda sua família. Um homem que não deixava passar em branco nenhuma data comemorativa. Na época de fim de ano, a família tinha o hábito de visitar todos os shoppings para ver os temas e decorações.

Ana define o marido como uma pessoa centrada, sincera e companheira, também no trabalho. Era muito querido por todos e os colegas do serviço, generosamente, fizeram uma doação, que vem ajudando o sustento da esposa e da filha. No sítio, queriam fazer uma homenagem, colocando o nome dele em uma rua.

Carlos costumava dizer para a mulher: "Tenho certeza que quando eu morrer, você vai vender isso aqui". Esse sentimento vinha do cansaço de Ana Carolina aos fins de semana, tendo que limpar tudo e trabalhar muito no sítio. No entanto, depois da partida do esposo, as coisas tomaram outro sentido e ela passou a ter gosto de cuidar do canto que lembra seu amado e de tudo que há nas terras.

Ana Luiza guarda inúmeros momentos do pai em sua memória, nos seus poucos seis anos de vida, porém com uma intensidade e alegria contagiantes. A mãe narra uma história que a filha gosta de repetir: "Quando Carlos estava internado, certa noite ele nos ligou uma da madrugada falando: 'oi Anas, bom dia'! Levantei assustada e quando falei da hora ele se desculpou 'a gente perde a noção do tempo aqui, desculpe. Vá dormir então'. A filha riu e sempre relembra essa história entre sorrisos, brincando com a falta de noção do pai".

Onde quer que esteja, estará ao lado de suas Anas, que, no aniversário de Carlos, soltaram um balão com um bilhetinho escrito pela filha: "Nós te amamos muito, de sua filha e sua esposa."

Carlos nasceu em Brasília de Minas (MG) e faleceu em Belo Horizonte (MG), aos 57 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pela esposa de Carlos, Ana Carolina Gouvêa Pinto Veloso. Este tributo foi apurado por Emily Bem, editado por Denise Pereira, revisado por Magaly Alves da Silva Martins e moderado por Rayane Urani em 27 de janeiro de 2022.