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Carmen Mendes Leite

1950 - 2020

Rasgava elogios às comidas preparadas em família e, como consequência, era sempre a primeira a ser servida.

Carmen foi uma mulher guerreira, que nunca desistiu, mantendo no rosto um sorriso que trazia alegria e acolhimento para os seus. Sua infância foi no campo, cheia de dificuldades. Especialmente para ela, que ficou órfã de mãe quando era muito criança, sendo necessário que ela e os seus dois irmãos fossem criados pelo avô. A lida começava muito cedo, entre 4h e 5h da manhã. Apesar da dureza do trabalho, guardava com carinho as lembranças daquele tempo.

A sobrinha Daiane se lembra de algumas histórias contadas pela tia. Ela contava que quando ia trabalhar na roça morria de medo das mandruvás, porque já tinha sido queimada no braço por uma dessas lagartas. Também dizia que havia sido picada por uma jararaca, e para sarar tinha tomado garrafadas. Dos tempos duros da roça, Carmen guardava com carinho o gosto pelas modas de viola e os modões, e se emocionava contando as histórias dessa época para a sobrinha, quando já morava em São Paulo.

Para São Paulo ela foi quando tinha uns 13 anos, para trabalhar de empregada doméstica, acompanhando aquela que viria a ser sua futura sogra, e que na época era funcionária na fazenda do avô. Carmen tinha um apego especial por ela e a chamava carinhosamente de mãe. Apaixonou-se pelo filho da “mãe de coração” e com ele teve três filhos: Sérgio (in memoriam), Hamilton e Claudia. Perdeu o filho mais velho aos 15 anos, e o marido quando ela estava com 35. Apesar das perdas que sofreu desde menina, por pior que fosse a situação, nada mudava seu estado de espírito positivo e esperançoso. Contentava-se com tudo, mesmo que fosse pouco.

As suas grandes paixões eram os filhos, as suas netas e os bisnetos. O filho Hamilton, conhecido como Ailton, casou-se e a presenteou com a dádiva de ser avó. Teve duas netas: Patrícia e Ariane. Com uma delas tinha uma conexão que fazia com que se emocionassem só de olhar uma para a outra. Um amor lindo. Depois vieram os bisnetos, xodós de Carmen, que lhes dedicava cuidados e os amparava inclusive financeiramente. Das brincadeiras, a favorita era com o cachorrinho de Carmen.

A filha Claudinha era sua companhia do dia a dia. As duas, muito unidas, dormiam até na mesma cama. Sempre foram muito amigas e conversavam bastante. Quando, por conta de problemas de saúde com obesidade e diabetes, Carmen precisou de cuidados especiais, Claudinha esteve ao seu lado.

Uma das alegrias de Carmen era reunir toda a família aos domingos. Chegou a mudar o dia da comemoração do próprio aniversário para garantir a presença de todos, como lembra Daiane. Amava comer churrasco e contar histórias. Era sempre a primeira a chegar aos churrascos na laje. Deleitava-se com o pão com linguiça, com a carne, com o vinagrete, com tudo! O pão, comia escondido da filha. Outro prato que lhe apetecia era a lasanha da sobrinha Daiane. “Ela amava comer, me ver cozinhar. Sentava na cozinha e ficava falando: 'Nossa, Dai! Que delícia as comidas que você faz!'”, lembra a sobrinha, que chamava a tia pelo apelido de Teti. Um dos motivos para acompanhar a família na cozinha era que sempre era presenteada com o primeiro prato para experimentar!

Se ela perdia o apetite, a família já sabia que havia algo de errado acontecendo. Gostava de fazer frango e quando fazia já avisava: 'Olha, cinco pedaços são meus". Gostava de conversar enquanto a família cozinhava, falava sobre seu dia a dia, sobre os episódios das novelas que acompanhava.

Era apaixonada pelo Silvio Santos. Não perdia um programa, mesmo nos dias de churrasco. Só ia dormir quando o programa acabava. Ainda tinha o hábito de assistir todos os dias a novela "As Aventuras de Poliana".

Gostava de folhear álbuns de fotos de aniversários, casamentos, viagens. Perguntava sobre tudo, queria saber quem eram as pessoas que estavam na foto, mesmo que não as conhecesse. Era muito curiosa! Até mesmo no celular, quando a sobrinha estava olhando as redes sociais, tia Carmen ficava ligada nas fotografias. Era muito fotogênica, aliás, e fazia poses para tirar fotos. A sobrinha lembra que o último álbum que as duas viram juntas foi de fotos da época em que estava morando no exterior.

Carmen foi uma pessoa muito amorosa, de voz calma, dona de um coração puro e inocente. Um ser humano difícil de encontrar. Aquela pessoa que podia receber um espinho, mas retribui com uma rosa e um puro sorriso. Bondosa com todos, deixa um exemplo de caráter e generosidade.

Carmen nasceu em Getulina (SP) e faleceu em São Paulo (SP), aos 69 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pela sobrinha de Carmen, Daiane Thomaz Leite. Este tributo foi apurado por Luisa Pereira Rocha, editado por Ana Clara Cavalcante, revisado por Fernanda Ravagnani e moderado por Rayane Urani em 25 de agosto de 2021.