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Cely Siqueira da Rocha

1929 - 2020

"Quero levar o meu canto amigo a qualquer amigo que precisar", ela era como a música: generosidade e alegria.

A nonagenária Cely era uma mulher extremamente dinâmica e absolutamente lúcida, sua única queixa era uma dorzinha nas costas. Cely gostava muito de cantar, participou de corais a vida inteira, e também gostava de dançar. Chamava a atenção por sua risada contagiante.

De sua infância numa fazenda em Anchieta, além do amor à natureza, às flores e ao mar, ela ainda guardava grandes e boas recordações de quando montava a cavalo, remava e nadava no Rio Benevente. Há anos ela não cultivava mais esses pequenos prazeres, um pouco por viver agora em área urbana, mas também devido à idade.

“Estamos falando de uma mulher extraordinariamente ativa e extremamente pra cima, moderna, com uma cabeça pra frente. Se eu tivesse que usar uma palavra apenas que a definisse e que ─ tenho certeza de que todas as pessoas que conviveram com ela, iriam concordar ─, essa palavra seria "Generosidade", diz a filha Julia. E complementa: “minha mãe não via as pessoas com nenhum tipo de preconceito. Mesmo aos 91 anos, ela não entendia, por exemplo, o racismo, a homofobia, a xenofobia... ela não compreendia o porquê das pessoas terem sentimentos dessa natureza. Tudo que minha mãe tinha, ela disponibilizava para os outros, independentemente do grau de parentesco, eu falo aqui desde dinheiro até uma roupa, uma coberta, uma comida, uma conversa... Então, "Generosidade" é a palavra mais forte para definir minha mãe.”

Sendo às vezes mais rígida com um, mais complacente e liberal com outro, criou os filhos Selma, Marcos, Ricardo e Julia. “Ela surpreendia pela sua idade e religiosidade ao lidar com várias situações. Era uma feminista de carteirinha e primava muito pela liberdade”, afirma Julia.

Selma, a primogênita de Cely, por ter transtornos psíquicos, sempre inspirou maiores cuidados e preocupações da mãe, tanto que em seu último ano de vida, Cely optou por ir viver com a filha em uma clínica geriátrica; assim assegurava-se de que Selma já estaria totalmente adaptada e num excelente local quando ela partisse. Ela pensava em tudo!

Tanto pensava e organizava que, antes de ir para a clínica, Cely deixou várias recomendações sobre o seu velório, pois “ela acreditava plenamente em Paraíso, em Céu...”, conta Julia. Segundo a filha, “ela achava que era um ritual de passagem que tinha que ser bonito. Então, deixou uma missa organizada, inclusive com a relação de músicas que deveriam ser cantadas: ela gostaria que os amigos cantassem ‘Eu Quero Apenas’, de Roberto e Erasmo Carlos. Havia escolhido também o padre que iria rezar a missa, as orações e as liturgias. Com as limitações impostas pela pandemia, todos os rituais que ela havia planejado e deixado organizados não puderam ser realizados, por isso o Memorial é tão importante para nós!”

Seu último ano foi afastada do contato e do afeto dos outros filhos, dos netos e, especialmente, dos seus amigos da igreja, que tanto ela amava. Mas quem pensa que foi um ano sem diversão e alegrias se engana. Advinha quem puxou o bloquinho de carnaval e quem foi a noiva na festinha junina sem convidados que fizeram na clínica? Sim, cantar e dançar eram duas das suas alegrias, além de escrever. Cely deixou um caderno de memórias para seu neto mais novo.

Cely gostava muito de trabalhar, trabalhou em escola, mas queria mesmo era ter sido bióloga. Ela foi a primeira mulher auxiliar de autópsias no Brasil, chegou a trabalhar em três turnos durante mais de trinta anos. Encontrou na profissão uma forma de tratar as pessoas com respeito na hora da partida; também pôde retirar com suas mãos e encaminhar para o destino correto os ossos de um dos filhos que perdeu em um acidente fatal em uma localidade distante de onde vivia e de quem não pôde se despedir.

Cely foi mãe, avó, amiga, tia querida, profissional, feminista, rezadeira, benzedeira, divertida e generosa. Ajudar o próximo era sua meta de vida. Muita gente pedia para ela oração, novena e benzedura para diversas aflições.

“Gostava demais de passeios que incluíssem sítios ou praias e era louca por uma boa muqueca capixaba e por bacalhoada, acompanhados de cerveja ou vinho, sem álcool depois de uma certa idade”, relata Julia já relembrando alguns episódios de despedida que se tornaram constantes nos últimos dez anos de vida da mãe, e que ganharam graça justamente por essa repetição: “Mamãe falava muito que logo iria encontrar meu pai ─ que já é falecido ─, e dizia sempre: ‘Então... encomenda uma comidinha: feijoada, ostras, siri... e convida uma turma’.”

Dos maiores sonhos de Cely: ser bióloga, sair na ala das baianas de uma escola de samba e fazer uma viagem internacional com roteiro religioso, ela realizou apenas o último, mas com classe e em alto estilo. Esteve em Lourdes, Assis, Roma e ainda na Terra Santa, em Israel.

Esta homenagem de despedida, que eterniza a memória e a história de Cely, não poderia ser finalizada sem o trecho da canção que ela mesma escolheu para que celebrassem sua trajetória aqui na Terra:

“Eu quero apenas olhar os campos
Eu quero apenas cantar meu canto
Eu só não quero cantar sozinho
Eu quero um coro de passarinho
Quero levar o meu canto amigo
A qualquer amigo que precisar.
Eu quero ter um milhão de amigos
E bem mais forte poder cantar
Eu quero ter um milhão de amigos
E bem mais forte poder cantar...” (Eu Quero Apenas – Roberto e Erasmo Carlos)

“Se existe mesmo o Paraíso, podem ter certeza que ela está lá!”, conclui a filha Julia.

Cely nasceu em Anchieta (ES) e faleceu em Florianópolis (SC), aos 91 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela filha de Cely, Julia Siqueira da Rocha. Este texto foi apurado e escrito por Lígia Franzin, revisado por Sandra Maia e moderado por Rayane Urani em 8 de fevereiro de 2021.