Sobre o Inumeráveis

Cícero Alves de Freitas

1976 - 2020

A saudade da sua terra cearense era tamanha que, de São Paulo, ele sentia o cheiro das frutas do seu sertão.

Do sertão do Ceará para São Paulo, Cícero migrou muito cedo. Consigo, levou uma vontade de ser cantor sertanejo. Um sonho de menino que não foi o seu destino final, mas lhe apontou um caminho a ser percorrido.

A infância no sertão tem casa de taipa, com paredes de barro e telhado de telha; tem também família grande, com pai, mãe e 12 filhos e filhas; tem ainda cores alaranjadas com sabor de manga.

Foi nesse grupo de 11 irmãos e irmãs que Cícero encontrou acolhimento e segurança, conta uma delas, a irmã Gorete: "Nosso pai enfrentava o alcoolismo. Nossa mãe, a depressão. Foi assim que nós, os irmãos, nos unimos muito! Nunca deixamos que ninguém viesse nos explorar. Nós cuidávamos uns dos outros e nos protegíamos".

Como toda relação fraternal, além do cuidado, tinha também espaço para as brincadeiras. Cícero foi chamado a vida toda de "Til", sabe-se lá por quê. Diz Gorete que os irmãos mais velhos devem tê-lo apelidado assim e, assim, ficou. Ele gostava do apelido, porque ressoava afetuoso.

Ainda na infância, Cícero sofreu um grave acidente provocado por uma caminhonete, ficando certo tempo desacordado. "Ele viveu uma experiência de quase-morte". O acontecimento marcou a vida da família, que era – e ainda é – muito católica e considerou sua recuperação um milagre. Sem sequelas, Cícero seguiu a vida com alegria contagiante. "Ainda que muito novo, passou a ser muito grato pela segunda chance concedida".

Cícero, desde jovem, era intenso e decidido. Ainda adolescente, lá no sertão do Ceará, apaixonou-se pela prima Ivonete. "Sabe aquela paixão grudenta de adolescente?", descreve Gorete, lembrando que a paixão era tanta que o irmão decidiu se casar muito cedo. "Nossos pais até se opuseram no começo, porque ambos eram muito novos, mas viram que não teria jeito de impedir, pois gostavam-se muito". Desse relacionamento, que atravessou décadas, fases da vida e estados, nasceram dois filhos: Eduardo e Marcelo.

Os filhos parceiros em dias de assistir ao futebol. Apesar de ser torcedor do Palmeiras, pouco entendia do jogo, o lance dele mesmo era aproveitar quando o time ganhava e, assim, ter um motivo para provocar os clientes e amigos santistas do trabalho, levando o pessoal às gargalhadas no dia seguinte à partida.

Em São Paulo, Cícero trabalhou como garçom, ajudante de cozinha e, por último, foi dono de um bar. Conta Gorete que ele nunca foi demitido de um emprego, tamanha era sua dedicação, ganhava sempre a estima dos patrões. Uma das marcas de Cícero era também seu jeito de conselheiro, sempre disposto a escutar as pessoas, sem discriminá-las.

Sendo carismático, por onde passou conquistou pessoas, tal qual um cantor conquista fãs. Com o tempo, aquele sonho pueril de ser cantor sertanejo esmaeceu e, dentro dele, iluminou-se o grande sonho de sua vida: retornar ao sertão – desta vez, com condições melhores. Seus dias foram guiados por esse desejo. "Ele queria voltar e morar no interior do Ceará mesmo. Não era na capital, não".

Dentre suas paixões, a pelo sertão era a maior. Ele amava a liberdade que o sertão lhe representava. Amava a vida simples sertaneja. Decidido como só ele, um dos seus últimos feitos foi comprar um pedaço de terra no seu amado sertão.

Deste homem sertanejo emanou vida, que se multiplicou em sementes nos corações dos familiares. Em lembrança a um ano de sua partida, a família plantou mangueiras para anunciar a continuação de sua história.

Cícero nasceu em Acopiara (CE) e faleceu em São Paulo (SP), aos 43 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela irmã de Cícero, Maria Gorete de Freitas. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Michele Bravos, revisado por Lígia Franzin e moderado por Rayane Urani em 8 de junho de 2021.