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Cilene Cabral Carvalho Chagas

1962 - 2020

Na estante a foto dos filhos, o símbolo da enfermagem e uma viola. Seus maiores amores.

Cilene foi uma daquelas pessoas que era mais dos outros que de si mesma.

Não é à toa que a sua história de vida está intrinsecamente marcada pela profissão que escolheu seguir quando ainda tinha vinte e poucos anos: a enfermagem. A palavra “nurse” em inglês, que significa enfermeira(o) tem origem na junção dos termos em latim “nutrix”, que significa mãe, e “nutrire”, que tem como significados criar, nutrir. Coincidentemente (ou não), todos estes vocábulos estavam ligados à personalidade de Cilene.

Sua história começa em 1962, em Campina Grande, no interior da Paraíba. Filha do meio em uma família de dez irmãos, cujo pai era bastante tradicional (era presbítero), Cilene cresceu assumindo sempre o papel de conciliadora da família. Segundo seu filho mais novo, Emmanuel Chagas, sua mãe buscou, durante toda a vida, ser o elo que unia os parentes. “Ela era muito pacificadora e cresceu desenvolvendo essa relação de cuidado com o outro”, conta o rapaz.

Por ser a única da família que seguiu carreira na área da saúde, Cilene sempre foi a “queridinha” do pai. Até que, em 1987, acabou engravidando da sua filha mais velha antes do casamento e, com medo de desapontar os pais, fugiu com o seu companheiro para a cidade de Aracaju, em Sergipe. Apesar deste rompimento, a sua personalidade pacificadora não permitiu que ela passasse o restante da vida sem fazer as pazes com o pai. Emmanuel conta que, anos depois, quando seu avô paterno já estava próximo da morte por conta de um câncer terminal, Cilene foi conversar com o pai e lhe pedir perdão pelo ocorrido tanto tempo antes. Poucos dias depois, ele viria a falecer.

Quando chegou em Aracaju, na década de 1980, trabalhou durante alguns anos exercendo a sua profissão de enfermeira. Porém, certo tempo depois do nascimento do terceiro filho, em 1991, Cilene e seu companheiro decidiram que ela deixaria o trabalho para se dedicar à criação das crianças, fato que originou em seus filhos boa parte das suas memórias infantis. “Não é que meu pai era ausente, mas ele trabalhava o dia todo. Então, todas as lembranças de infância que tenho foram com a minha mãe”, relembra Emmanuel.

Entre as principais recordações está a ida à escola. O rapaz não consegue esquecer que, todos os dias, Cilene o levava para o colégio de ônibus, porque ele era muito novo para ir sozinho. Porém, para economizar, quando voltava para casa, optava por ir a pé por um percurso de aproximadamente cinco quilômetros. Na hora de buscar as crianças, fazia o percurso inverso: ia a pé até a escola, debaixo do sol de meio dia, para depois voltar para casa com os filhos no conforto do transporte. “Na época eu não entendia muito bem, mas agora, depois da maturidade, entendi esse sacrifício que a minha mãe fazia pela gente”, rememora o filho.

Após vários anos fora do mercado de trabalho, Emmanuel conta que Cilene sentiu a necessidade de voltar a trabalhar. No entanto, não era qualquer trabalho que a satisfaria: “O sonho de mamãe era ser concursada e ela realizou esse sonho várias vezes durante a sua vida, tudo isso sem abandonar os cuidados com a gente”. Após estudar por conta própria, enquanto se dividia também entre a casa e a família, Cilene foi aprovada em um concurso na cidade de Lagarto. Alguns anos depois, foi aprovada em outra seleção, na cidade de Itaporanga. Por fim, passou em seu último concurso, para trabalhar na cidade de Nossa Senhora do Socorro, na comunidade do Povoado Oiteiros. Este foi seu emprego até o fim da vida. O filho conta que a dedicação da sua mãe ao trabalho era excepcional: “Ela amava a enfermagem, dava a vida por cuidar dos outros”. É com carinho que ele recorda das vezes que Cilene ia de casa em casa no povoado, com o carro da prefeitura, para cuidar dos pacientes e saber se eles precisavam de algum auxílio. Muitas vezes, a atuação ia além da questão profissional e ela também organizava ações de caridade, doações etc., pois se tratava de uma comunidade bastante carente.

Outro episódio que Emmanuel se recorda, ao falar da dedicação da mãe pelos outros, aconteceu durante uma cena aparentemente banal. Enquanto a família passeava de carro pela cidade, Cilene avistou, do lado de fora, um rapaz passando mal. Ela não tardou em pedir que parassem o carro para descer e ajudá-lo. Graças a essa ação, foi possível salvar a vida do rapaz – que estava, na verdade, tendo um ataque epilético.

O amor pela música também foi uma das coisas que Cilene deixou de positivo para o seu filho. “Ela mantinha na estante dela uma foto dos filhos, o símbolo da enfermagem e uma viola, que mostravam o quanto ela amava essas três coisas”, conta. Esse amor culminou no fato de que ele seguiu na carreira musical, cursando Música na universidade e se tornando maestro. No entanto, Emmanuel considera que a dedicação ao outro foi, na verdade, a maior lição que a sua mãe lhe deixou: “A maior herança que a minha mãe me deu foi servir”, finaliza.

Cilene nasceu em Campina Grande (PB) e faleceu em Aracaju (SE), aos 58 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pelo filho de Cilene, Emmanuel Cabral Teles Chagas. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Malu Costa de Araújo, revisado por Lígia Franzin e moderado por Rayane Urani em 10 de setembro de 2020.