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Corinto Xavier da Silva

1938 - 2020

O relojoeiro que fez do tempo seu aliado. Agora, é tempo de memórias...

Não é que ele desprezasse o tempo. Ao contrário, cuidava para que as frações do dia fossem medidas com rigor. Numa época de distâncias traçadas a passo mais lento, aprendeu a consertar relógios num curso por correspondência. As lições chegavam pelos correios e eram lidas, pacientemente, pela esposa. Parágrafos esgarçados que espraiavam dias melhores logo ali, no tempo do depois.

E teve muito depois, muito futuro melhor do que promessa fiada ao passado. Até o cantor Jair Rodrigues virou cliente da famosa relojoaria Mido, em Goiânia. Mas a relação pessoal de Corinto com o tempo seguia num compasso de interpretação livre. Plantava milho e cana-de-açúcar no quintal de casa. Sem pressa, via a lua ora tomar conta, ora correr do céu enquanto esperava a colheita.

Quando ela chegava, quanta satisfação! Amarelas, marrons, douradas: as espigas iam mudando de cor conforme assavam na brasa improvisada. A fumaça subia alto, muito alto. O perfume vagava para longe, quase confundia-se com a brisa do litoral de São Paulo, onde a filha Magaly vivia aguada para desgranar um sabugo inteirinho.

Melhor do que isso, só a lata de frango com farofa que aproximava Goiás da Bahia. O lanche tinha lugar especial na bagagem de férias da família, que percorria mais de mil quilômetros espremida num fusquinha zero, ouvindo a mesma fita k-7 com chorinho instrumental na ida e na volta. O relojoeiro aferrolhava as horas naquelas viagens – e nem é preciso ver foto para reviver tudo, afinal memória não usa relógio.

Corinto transitava com elegância nos pedaços de espaço espalhados pelo ano. Voltava para os dias de menino assistindo aos filmes do Mazzaropi. Mantinha-se entretido com as reprises como se fossem histórias inéditas. Provavelmente mais uma dessas mágicas de quem segredava acordos com o tempo – os biscoitos Chimango, de polvilho fresquinho e erva-doce, eram moeda preciosa nessas trocas. Saíam sempre e sem demora.

Na mitologia grega, a cidade de Corinto leva o nome de seu fundador e teve Éfira como primeira habitante. A moça era filha de Oceano. Corinto, o relojoeiro, não teve tempo de ver o mar.

Corinto nasceu em Caculé (BA) e faleceu em Goiânia (GO), aos 82 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela filha de Corinto, Magaly Alves da Silva Martins. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Juliana Parente, revisado por Lícia Zanol e moderado por Rayane Urani em 20 de agosto de 2020.