Sobre o Inumeráveis

Dalila Martins de Jesus

1952 - 2020

De vez em quando guardava objetos em lugares secretos, onde ninguém era capaz de encontrar.

A meiguice, o carinho e a afetuosidade de ‘tia Dallas’ conquistavam quem a encontrasse, especialmente as crianças. E todas na família, em três gerações, passaram por seu colo e seus cuidados. Dalila ajudou a criar os cinco sobrinhos e 16 sobrinhos-netos, alguns até com filhos. Com todo esse movimento, a rotina caseira não a impediu de ser cercada de gente e de carinho. “Seu apelido inclusive veio de um amigo do meu irmão que a chamava assim quando éramos adolescentes, aí acabou pegando e todo mundo a conhecia desse jeito”, relembra Muryllo, sobrinho-neto, que desde pequenino conviveu bem próximo a ela.

Dalila era a caçula de oito filhos, perdeu a mãe ainda na adolescência e passou a viver na casa dos irmãos mais velhos. Quando estava com cerca de 30 anos foi morar com a irmã, a avó de Muryllo.

Se por um lado a Síndrome de Down a fez mais indefesa frente às adversidades da vida, por outro transformou toda sua vivência em pura ternura.

Dalila tinha alguns hábitos já conhecidos dos seus mais íntimos, como dobrar repetidamente a mesma pilha de roupas, ou até esconder alguns objetos que depois ninguém conseguia encontrar. Com frequência pegava o celular e simulava conversas com naturalidade, já que a sua limitação auditiva tornava mais difícil manter os diálogos reais que não fossem aqueles acompanhados por gestos e mímicas.

Era uma pessoa animada e dançava com alegria. A escola não foi inclusiva nos tempos de Dalila, como observa Muryllo, nem por isso ela deixava de identificar o próprio nome em rabiscos e fazer escritos à sua moda. Também gostava de assistir novelas e de desenhar. Seus filtros da realidade eram bem mais porosos e suas entregas maiores. Dava asas à imaginação e acalentava seu coração desejando novos namorados e nutrindo gestações psicológicas, mais ainda quando se deparava com alguma mulher grávida por perto. Dedicava-se a um amor platônico por Marconi, sonhava e chorava por ele, "um alguém que nunca soubemos quem era”, comenta o sobrinho-neto de forma carinhosa.

Saía pouco de casa e auxiliava nos afazeres domésticos, mas todos os dias buscava sua independência, por exemplo, ao ir sozinha à padaria na vizinhança para comprar pão de queijo. Muryllo conta que ela levava o dinheiro e um bilhetinho com o pedido e, querida pelos atendentes, voltava satisfeita com a compra a tiracolo.

A mesma inocência quase pueril que marcou o perfil de Dalila ao longo da vida talvez também a tenha feito ser uma das vítimas da pandemia, por conta de um abraço singelo ou contato desprotegido, não se sabe ao certo.

Repleta de saúde e pureza, tia Dallas enche de saudade a família.

Dalila nasceu em Porangatu (GO) e faleceu em Anápolis (GO), aos 68 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pelo sobrinho-neto de Dalila, Muryllo Beltrão Durão. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Fabiana Colturato Aidar, revisado por Ana Macarini e moderado por Rayane Urani em 15 de julho de 2021.