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Damiano Longo

1942 - 2021

Sabia como poucos usufruir dos prazeres da vida: mesa farta, guarnecida com pães e macarronada, pessoas queridas e muitas gargalhadas.

Nascido na pequena comuna de Castrovillari, região da Calábria, durante a Segunda Guerra Mundial, Damiano cresceu em meio a casas de pedra enfileiradas e ruas sinuosas de sua charmosa aldeia. Na infância, aprontava diversas traquinagens na linha de trem em que seu pai trabalhava. Seu Francisco ficava furioso e sempre acabava ralhando com o filho.

A vida simples e pacata que levava em seu vilarejo rendeu inúmeras recordações, mencionadas por ele a todo momento. Nunca se esqueceu, por exemplo, da cachorrinha que foi sua fiel escudeira na juventude e nem de como a defendeu de uma cobra. Contava com brilho nos olhos da viagem que fez à Roma e dos sonhos desejados na Fontana di Trevi. Volta e meia, também relatava histórias do seu tempo de soldado, que acabavam sempre com demonstrações do manejo da arma — arrancando gargalhadas de seus amigos e familiares.

Mais tarde, para não se alistar no exército italiano, veio morar no Brasil, incentivado pelo irmão gêmeo, Cosmo, que já vivia por aqui. Logo que chegou, residiu algum tempo no tradicional bairro do Macuco, em Santos. Quis o destino que, após uma desilusão amorosa, ele encontrasse um novo recomeço na cidade de São Paulo.

Desde a sua chegada em terras brasileiras, dedicou-se ao próprio negócio, tendo sido proprietário de bar e de cantina: empenhava-se com todo amor e cuidado em cada etapa da preparação dos salgados e ficava todo satisfeito quando alguém elogiava os quitutes feitos por ele.

Certo dia, durante o trabalho, Damiano avistou Marlene — por quem se encantou à primeira vista — saindo da fábrica em que trabalhava e que ficava em frente ao seu bar. No dia seguinte, após o término do seu expediente, a moça foi surpreendida com uma cesta de café da manhã. Ela, porém, não cedeu à investida amorosa de Damiano. Ele, por sua vez, não desistiu de conquistar Marlene e sempre se oferecia para levá-la até sua casa após o turno de trabalho, mesmo com as recusas gentis da moça. Com o tempo, porém, ela acabou aceitando a carona. Surgia ali, um grande amor.

Marlene, à época mãe de três filhos, viu o coração de Damiano derreter-se por Tânia, Aguinaldo e Wagner logo que os conheceu. De maneira recíproca, as crianças se afeiçoaram instantaneamente ao moço de sorriso largo e sotaque diferente, que sempre os presenteava com doces e, principalmente, os preenchia de afeto e de atenção. Damiano fez de Marlene e seus filhos parte de si. Formou-se, então, o laço mais bonito e indissociável que existe: a construção de um lar. Algum tempo depois, foram abençoados com a chegada de Rita, filha caçula do casal, que completou a família.

A união entre Damiano e Marlene era inspiração para todos que os conheciam. Os dois permaneceram casados por quase cinquenta anos, até a partida dele, e possuíam um amor inexplicável um pelo outro. Faziam tudo sempre juntos e Damiano elogiava Marlene a cada passo dado por ela.

Para os quatro filhos, Damiano foi um pai amoroso e exemplar. Dedicou-se a ensinar valores e princípios, como respeito ao próximo, a importância do trabalho e que não há nada mais valoroso do que uma família unida. Estava sempre a postos para o que desse e viesse: era ele quem levava e buscava os filhos, quando mais novos, a qualquer hora e em qualquer lugar.

Todo esse afeto foi, ao longo da vida, correspondido com muito amor e carinho: Aguinaldo chamava-o carinhosamente de Tatuzinho, devido à sua baixa estatura e à sua aparência robusta. Já Wagner cortava as unhas dos pés de seu pai com o carinho de quem recebeu uma missão especial. O elo entre pai e filhos era tão forte que, mesmo depois de casados, Damiano ligava diariamente apenas para escutar a voz deles e saber como estavam.

Avô amoroso de Diego, Giovanna e Gustavo, derramava-se por eles, que retribuíam a afeição com a mesma intensidade. Presente em todos os momentos, era ele quem comprava doces, realizava passeios ao parque e levava os netos à escola. A neta Giovanna recorda uma lembrança da infância: "Quando pequena, todas as vezes em que eu ficava sob os cuidados do meu avô, às 11h da manhã, ele cortava um pepino, pedia para que eu fechasse os olhos e colocava os pedacinhos nas minhas mãos. Eu amava comer pepino e ele amava me fazer feliz"!

Tendo como prioridade a família, os sonhos de seus amados transformaram-se nos seus: queria ver sua neta graduada, o neto tornar-se jogador de futebol profissional e ansiava de todo coração por ser bisavô — desejo concretizado. Damiano era puro encantamento e paparicos por Enzo, seu único bisneto. Sonhava também em retornar à Itália para uma visita à cidade em que nasceu, após tanto tempo: queria revisitar as memórias presentes entre as vielas de sua comuna, com a gratidão de quem viveu intensamente sua história.

Damiano sentia-se em êxtase quando reunia toda a família em volta de uma mesa farta. Quaisquer ocasiões eram motivo para festejar, tanto que os almoços de domingo e as ceias natalinas tornaram-se tradição familiar, onde nunca faltava macarronada e pães, suas iguarias prediletas. Bom de garfo, comia de tudo, menos carne de frango, pois dizia que lhe fazia mal. Recepcionava as visitas com o semblante sempre alegre e tinha satisfação em vê-las alimentando-se bem. Eram encontros em que conversas, lembranças, gargalhadas e cantorias em italiano ecoavam por toda a casa.

Nas horas vagas, era frequentador assíduo do Parque do Piqueri, no bairro do Tatuapé, onde fazia caminhadas ao ar livre e encontrava sempre os amigos para jogos de dominó e partidas de bocha, esporte que era a sua paixão. Gostava também de assistir ao Programa Sílvio Santos e ao Roda a Roda Jequiti, interagindo entusiasmadamente com a televisão à medida que adivinhava as palavras-chave. Nos últimos anos, sentava-se em sua cadeira de praia, na área de lazer do condomínio em que morava, enquanto brincava de caça-palavras pelo celular.

Exemplo de dignidade e de cuidado com o outro, o amor que teve por todos, transformou-se em eternidade. "Seu Damiano está vivo em nossos corações e, com toda certeza, ao partir, levou um pouco de nós com ele. De alma aguerrida, foi um anjo em nossas vidas, nos modificando dia após dia com seu amor e sua sabedoria. Não há um momento sequer em que não pensemos nele com gratidão e saudade imensuráveis", conta a nora Suzy.

O legado de Seu Damiano será mantido e perpetuado como uma árvore de raiz forte, que continuará a crescer e dar bons frutos. Suas histórias, e suas gargalhadas ao lado de quem ele amava, serão revividas e ressignificadas em honra à sua memória, todas as vezes em que sua família estiver reunida.

Damiano nasceu na Calábria (Itália) e faleceu em São Paulo (SP), aos 78 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela neta e pela nora de Damiano, Giovanna Longo e Suzy Maria de Araújo. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Andressa Vieira, revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Ana Macarini em 17 de março de 2022.