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Davey Sin Hong Tjio

1956 - 2020

Um imigrante que valorizava suas raízes. Em seus altos e baixos foi amor, honestidade, força e perseverança.

Esta é uma homenagem de Hecthor Tjio para o seu pai, Davey:

Meu pai chegou ao Brasil junto com meu opa e minha oma em 1960, com quase 4 anos, e partiu pouco mais de seis décadas depois.

A vida nem sempre foi fácil, dizem que apenas imigrantes sabem como é ser imigrante. Ouvi sobre as histórias de como foram os primeiros anos, a primeira casa que moraram na Praça da Liberdade junto com outras famílias indonésias. Como foi morar em Santos, cidade e time que ele e opa amaram e também passei a amar; como ele ajudava opa e oma com a venda de frangos. A vida na Rua Meteoro, como era o Brooklyn antigamente, o gato que ele prendeu no carrinho de supermercado e conseguiu escapar; quando minha tia nasceu e ele juntou suas coisas para fugir da casa. Como foi passar alguns anos no internato em Rio Claro e como foi duro se tornar adulto e ajudar opa e oma quando as coisas viraram de cabeça para baixo; como vendeu pias de porta em porta em quase todo o estado de São Paulo e conseguir dar a volta por cima. O significado da sua cicatriz da cirurgia que fez ao doar um de seus rins pra a Oma no final dos 80. Como conheceu minha mãe na Fatec e como a ama e sempre a amou. O primeiro filme que assistiram no cinema e como ele contava que me desejou muito.

Eu vi opa e oma partirem, eu senti como doeu e como doeu ainda mais no meu pai. Percebi que é o ciclo natural... que os pais devem partir antes dos filhos, o contrário que é uma tragédia. Acho que a gente cresce sabendo que um dia vamos nos despedir... acho que eu tentei me preparar para este momento, mas a verdade, é que nunca vamos estar preparados.

Meu pai me proporcionou tudo o que eu poderia querer. Tive festas de aniversário, estudei em boas escolas, cresci em uma boa casa com piscina em uma boa vizinhança, jogamos tênis juntos, morei na Califórnia, tive carro aos 18. Nunca me faltou nada, muito menos amor e carinho.

Mas a vida tem altos e baixos, os negócios passaram a não andar bem. Tentou um recomeço que não deu certo e eu acompanhei um momento que pareceu ser só ladeira a baixo.

Ele sempre quis me proporcionar muito mais do que mereço, e ele batalhou para isto até o final e sempre com alegria e honestidade. Neste caminho todo, meu pai ajudou muitas pessoas e é importante na vida de muita gente, como pude sentir com toda atenção e carinho que recebi após sua partida.

Pai, lembro-me de quando eu era criança e imitava o bebê da família dinossauro e falava “não é mamãe, não é mamãe”, poxa, hoje me arrependo tanto de ter já feito isto. Não temos muitas fotos juntos, você quem tirou quase todas! Mas vendo as fotos que você tirou de mim, consigo lembrar de você por trás da câmera. Lembro dos inúmeros vídeos que filmou quando eu era bebê, falando comigo e me filmando aonde quer que eu fosse.

Lembro de muitas de nossas incríveis aventuras, nos passeios e viagens. E, relembro com especial carinho dos primeiros meses de Fecamp, quando você fazia questão de me levar a cada início de semana e buscar nos finais de cada uma.

Pai, você sempre foi um guerreiro, uma inspiração, o meu eterno herói.

Você me deu tudo que eu poderia querer e muito mais, tenha certeza disto. Eu tenho muito orgulho de você, me espelho e me inspiro em sua história e memória. Carrego comigo não apenas o seu sangue, mas sua vontade e determinação de fazer coisas boas acontecerem, sua natureza de espalhar alegria e sorrisos, seu amor e carinho pela mamãe, que eu vou cuidar e amar muito, assim como você espera.

Há anos carrego uma foto nossa na carteira, e, embora você não gostasse, fiz uma tatuagem do navio em que você, opa e oma chegaram em 60. Tenho muito orgulho de vocês.

Estou ferido, derramo lágrimas e o coração aperta muito, mas eu sei que vai passar e que eu vou levar todos os momentos que passamos juntos comigo para a eternidade.

Vou me consolar que você foi bem recebido no céu por Deus, por oma e opa. E que hoje está como na foto de quando você chegou ao Brasil, no colo da oma, o qual eu sei o quão é gostoso e o quanto você também sentia falta.

Descanse em paz, meu amado pai, meu primeiro e melhor amigo, meu eterno herói.

TERIMA KASIH ("Obrigado" no idioma indonésio).

Davey nasceu em Jakarta, Java (Indonésia) e faleceu em Jundiaí (SP), aos 64 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pelo filho de Davey, Hecthor Tjio. Este texto foi apurado e escrito por Lígia Franzin, revisado por Emerson Luiz Xavier e moderado por Rayane Urani em 26 de março de 2021.