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Décio Achilles Morato Mastrorocco

1954 - 2021

Com seu olhar atento e observador, conseguia dar atenção, interrogar, dar afeto e valorizar o que estava sendo dito.

Se considerados o tempo em que ele nasceu, o modo como viveu e seu olhar sobre a vida, o existir de Décio poderia ser facilmente comparado a um filme. Destes em que a realidade tem ares de ficcional. E de tão natural poderia ser roteiro de uma narrativa cinematográfica. Amoroso, solidário, cheio de energia e acima de tudo dono de um espírito livre e à frente de seu tempo, Dedé, como era carinhosamente chamado por amigos e na família, aproveitou bem o que a vida lhe ofereceu desde o nascimento.

No nome de Décio, há marcas importantes a serem destacadas. “Achilles” seu segundo nome é uma homenagem ao avô materno. Os sobrenomes “Mastrorocco” e “Morato” sinalizam a origem italiana do pai Diogo e de Regina, descendente de brasileiros.

Um dos aspectos em que a realidade de Décio beirava algo de ficção é que ele foi uma criança que inspirou cuidados. Devido a uma fragilidade óssea — e às inevitáveis travessuras infantis —, sofreu várias fraturas pelo corpo. Assim, ao longo do tempo, para evitar novos incidentes, foi precisando inserir restrições na prática de atividades físicas. Rosaly, a irmã mais velha, conta que de tanta demanda por cuidados durante as fraturas ele acabou ficando até mimado.

Outra lembrança da infância de Décio, repleta de afeto, está associada ao sabor da comida da avó Emygdia. Ele apreciava o arroz com feijão e “courinho de porco” preparado por ela. Mesmo não sendo muito comilão, nos dias em que podia almoçar com a avó, Décio costumava comer um pouco mais de tanto que gostava do prato que ela preparava, às vezes até com uma deliciosa batata frita.

Foi também ainda menino, por volta de seus dez anos, que ficou evidente sua paixão por automóveis. Diante da proibição dos pais de que pegasse o volante, ele acabava convencendo o motorista da família a deixar que ele manobrasse o carro numa área interna da casa. De marcha à ré e depois conduzindo o veículo para a frente, ele tirava e recolocava o carro na garagem sob supervisão.

Na escola, estudou até onde quis e optou por não fazer nenhum curso universitário, embora pudesse. É que Décio, dono de uma energia vital impressionante, não gostava muito de ficar assentado nos bancos escolares. No normal de todo menino, fazia lá suas travessuras, mas no geral era considerado um aluno obediente e inteligente.

Já adulto, a paixão pelos carros virou uma coleção e também um lazer. Um a um, Décio foi comprando carros de marcas famosas e ao final da vida tinha sete deles, guardados com todo cuidado. Graças ao "hobby", tornou-se sócio do Clube Alfa Romeu, a participar de encontros de proprietários e exposições de carros antigos. Noutros momentos, pilotando um de seus queridos automóveis, participou de corridas realizadas no Autódromo de Interlagos, em São Paulo. Neste movimento, fez muitos amigos, o que desde o falecimento lhe rendeu diversas homenagens no Clube do qual era sócio.

O lado profissional de Décio também esteve associado ao mundo dos automóveis. Por muito tempo atuou no ramo de compra e venda de carros e chegou a ser diretor de uma concessionária de veículos da Grande São Paulo respirando o ambiente automotivo cotidianamente. Era ele também quem comprava e vendia carros para muitos da família: irmãos e sobrinhos delegavam a responsabilidade de negociar seus carros, sem nenhuma dúvida.

O gosto pela vida noturna é outro elemento que dava um ar glamoroso à realidade da vida de Décio e remete a cenas de cinema. Bem novo, por volta de seus 18 anos, ele passou a viver várias experiências na noite da capital paulista. Em algum momento criou para si o pseudônimo de “André” também compatível com o apelido de “Dedé”. E era assim que ficou conhecido em restaurantes, boates e casas de show paulistanas.

Boêmio — e porque não dizer, um “bon vivant” —, André gostava de sair para beber e comer bem em restaurantes famosos. Sua culinária predileta era a japonesa. Noutros momentos ia a shows e teatros e frequentava também o Jóquei Clube.

Nesses ambientes ele também fez muitos amigos e se aproximou de mulheres e transexuais. Com seus carros de luxo levava suas amigas a restaurantes e boates aos quais elas não poderiam ir por conta própria. Muitas vezes, virava a noite e passava em casa apenas para tomar um banho e seguir direto para o trabalho. Dedé era conhecido pelos grandes artistas trans de São Paulo.

Uma dessas amizades foi com Núbia, que se sentia muito querida por Dedé. Importante registrar que André costumava ajudar muito a quem precisava. Ele esteve ao lado de muitas pessoas da comunidade trans da capital paulista com seu jeito atencioso e carinhoso, que foi a marca de sua amizade com Núbia.

Décio viveu assim desde que conheceu e decidiu se casar com Silvana. Um relacionamento marcado por muita amorosidade, dedicação e carinho. O casal, que optou por não ter filhos, convivia com naturalidade com o lado boêmio de Dedé. “Bonequinha”, apelido afetuoso como se dirigia a Silvana, entendia a vontade do esposo de sair sozinho com amigas. A irmã de Dedé, Rosaly, ressalta que nunca ouviu Silvana falar nada de negativo a respeito dele, pois compreendia que Dedé tinha uma mentalidade à frente do seu tempo, que precisava ser respeitada.

Com os irmãos, Rosaly, Diogo, Rita e Dario, e os 13 sobrinhos, Décio também era sempre amoroso e amigo. Sobre a relação de Dedé com Rosaly, vale contar mais um pouco. Como irmã mais velha, foi ela uma das pessoas que mais cuidou de Décio desde os tempos de suas fraturas na infância. A tal ponto que, no dia do falecimento da mãe, Dona Regina, a irmã recebeu a missão continuar cuidando dele.

Assim, foi brotando entre os dois uma grande amizade. Na época do casamento dele com Silvana, Rosaly participou ativamente da preparação do enxoval do irmão. E graças a uma presença constante de um na casa do outro, foram se tornando confidentes e cúmplices. Emocionada, Rosaly conta que lembra de Dedé todos os dias e que ainda hoje conversa com ele em pensamento.

Com os sobrinhos, não foi diferente. Para Antonela, filha do caçula Dario, Dedé era como se fosse um avô, o que ficava evidente no carinho que um tinha pelo outro. No caso de Marcelo, filho de Rosaly, o resultado da maneira calorosa de tratar os sobrinhos fez de Décio o seu padrinho de batismo.

Com Ricky, outro filho de Rosaly, o tio considerava o sobrinho uma pessoa famosa pelo fato de trabalhar com cinema. Ricky explica que por várias vezes Dedé o apresentava com estes atributos e que, sempre que isso acontecia, ele pedia ao tio que não fizesse aquilo, pois não se considera assim. O certo é que a colaboração e o incentivo de Décio foram fundamentais na carreira de Ricky, que já produziu alguns filmes, inclusive abordando a realidade da comunidade LGBTQIAPN+.

Passando a dizer sobre o jeito de ser de Dedé, um detalhe não pode deixar de ser contado. O olhar dele era uma característica marcante e uma de suas formas de expressão e comunicação com as pessoas. A irmã Rosaly define o olhar do irmão como “reflexivo”. Décio não era muito de sorrisos, mas era muito observador e olhava fixo para qualquer um com quem se relacionasse.

Décio segue vivo no cuidado da esposa Silvana com os carros da coleção dele. No jeito vivo e vibrante como o sobrinho Ricky fala do tio. E nas conversas cotidianas que a irmã Rosaly tem com ele em pensamento, mantendo assim acesa a amizade e presença dele.

Décio nasceu em São Paulo (SP) e faleceu em São Paulo (SP), aos 67 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pelo sobrinho de Décio, Ricky Mastro. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Ernesto Marques, revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Rayane Urani em 1 de dezembro de 2022.