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Dilma Nazaré Ferreira Bertoldo

1945 - 2020

Na Feira da Providência voltava a ser criança relembrando os sabores de sua terra natal: o Pará.

Dilma era uma paraense que nasceu na Ilha do Cocal, um lugar isolado depois de Colares, no Litoral da Baía de Marajó. Quando tinha sete anos de idade ficou órfã de pai. Segundo relatos ele faleceu de uma hemorragia, provavelmente causada por uma úlcera. A mãe dela então resolveu mudar-se com os filhos e alguns parentes para um novo povoado que fundaram chamado de Ariri. Com muitos filhos e poucas condições, distribuiu os filhos menores para que os maiores, já adultos, pudessem criar. Nessa distribuição Dilma ficou aos cuidados de um dos irmãos que se mudou com ela para Belém. Foi um tempo de muito sofrimento e dificuldade e ela então passou aos cuidados de um outro irmão que a levou para a Cidade Paulista de Santos. O irmão não tendo tempo de cuidá-la a deixava sobre os cuidados de sua esposa, o que para ela representava a continuação do sofrimento vivido em Belém. Sensibilizados com a situação de vida de Dilma, uma família de amigos do seu irmão, ofereceu-se para cuidar da menina, que agora já era uma jovem de 15 anos de idade. Assim, com desconhecidos, Dilma mudou-se para o Rio de Janeiro.

A vida no Rio de Janeiro era melhor, com menos sofrimento e livre de maus-tratos, no entanto apesar de ser tratada como “da família” seu papel era de empregada doméstica. Nesse período, não se remunerava esse tipo de trabalho e a dívida de gratidão a ela bastava como pagamento. Dilma que ainda era analfabeta aos 24 anos ansiava por uma oportunidade de estudo, de ser pelo menos alfabetizada. Sua determinação nesse propósito foi tanta que convenceu a matriarca da família que a acolheu a deixá-la fazer o Curso Supletivo e concluir até o exame de admissão, que na época equivalia ao quarto ano do Ensino Primário. A partir daí fez Curso de Atendente de Enfermagem. Seu sonho era trabalhar na Santa Casa. Iniciou nessa Instituição, mas não pode ser efetivada, porque não passou em um exame de vista por conta de ser portadora de Miopia em grau elevado. Eram outros tempos... Contudo ela não desistiu e tendo feito um Curso de Auxiliar de Consultório Dentário, conseguiu um emprego no Consultório Odontológico do Dr. Ivan. Ela trabalhava e continuava morando com a família que a acolheu.

Nessa época havia uma senhora que vendia Produtos Avon e se tornou sua amiga. A tal senhora falava para ela com entusiasmo de um filho que tinha que era bonitão coisa e tal, porém Dilma, em princípio, não se interessou. Até que um certo dia, em um momento de aflição, a dita senhora a procurou pedindo ajuda, pois o filho havia se envolvido em uma confusão de bar e estava preso. Sensibilizada pelo pedido da amiga, ela a acompanhou até a delegacia ajudando-a a livrar o filho da prisão. Nesse momento o rapaz interessou-se por ela, fazendo elogios e convencendo “a moça de família” a lhe dar uma oportunidade, considerando que não se encontrava nas melhores condições, por assim dizer, pois era viúvo e tinha problema com bebida.

O encontro inicial aconteceu em abril e em agosto de 1975 estavam se casando em Santos sobre as bênçãos do irmão, que foi padrinho do casamento. A lua de mel foi a bordo do Trem da Prata, retornando para o Rio de Janeiro. O primeiro lar foi na Rua do Lavradio, depois mudaram-se para o Largo do Tanque e por fim foram parar em Rocha Miranda, em uma vila de casas do sogro de Dilma, um português turrão que não era de muitos amigos.

Dilma foi mãe pela primeira vez em 1979 e pela segunda em 1983. O ano foi marcado pela alegria do nascimento da segunda filha, entretanto o ano seguinte, 1984, foi marcado por um drama: um acidente de trânsito gravíssimo sofrido pelo marido, que além de ter deixado um prejuízo material, perda total do táxi dirigido por ele, deixou uma sequela grave, ficou cego. A situação de saúde do marido agravou-se ainda mais com a descoberta de uma diabetes, além do alcoolismo e da cegueira. Então ela com as duas filhas pequenas para criar, o marido inválido e um monte de contas para pagar, foi se desfazendo de tudo o que tinha para honrar os compromissos financeiros incluindo o aluguel da casa do sogro, que não dispensava o pagamento mesmo diante da situação financeira difícil do filho com a família.

Dilma perdeu tudo de material que tinha. A filha lembra com tristeza do momento em que teve que entregar ao vendedor as três máquinas de costura da confecção da mãe por falta de pagamento. Sem condições de trabalhar ela tomou a decisão de com a família, se mudar para seu lugar de origem Ariri, onde foi acolhida pela mãe que não tinha contato há anos permanecendo lá por três anos. Com a morte do sogro no Rio de Janeiro, retornaram e com a herança conseguiram um local para viver e alguma renda, o que trouxe alívio para toda a família. Nesse tempo que as coisas começaram a melhorar eis que um câncer se abate sobre a mãe de Dilma que falece. O país passava por uma forte recessão e logo a renda do aluguel do bar, deixados de herança pelo sogro, não era suficiente para tantas despesas. Dilma pedia muito dinheiro fiado e não era suficiente. “Chegamos a comer milho de galinha batido no liquidificador” relembra a filha. Mesmo cego o marido não conseguia qualquer benefício.

Como tudo na vida passa, os piores dias passaram e o marido finalmente conseguiu realizar uma cirurgia e recuperar parte da visão. No entanto, os olhos que enxergaram a beleza e bondade de Dilma em 1975 já não eram mais os mesmos em 1993. Ao voltar a enxergar o marido viu uma mulher sofrida pela dureza dos dias e expressou em palavras seu sentimento. Ela ficou triste e chorou. Sete meses depois ele enfartou e faleceu, sendo sepultado no Dia dos Namorados do ano de 1995. Como lembrança desse dia Dilma guarda as últimas palavras proferidas pelo marido na ambulância: "ô mulher como te amei..."

Após a morte do marido e com sua habilidade para a costura terminou de criar as filhas. Quando a filha mais velha casou passou a ajudá-la no bar. Viveram momentos tensos em episódios de assaltos, mas superaram. A filha mais velha vivia em São Tomé das Letras, com o segundo marido, o seu filho fez questão de ficar com a avó e se comprometeu a cuidar dela até o final da vida, cuidando dela com dedicação durante o período em que esteve acometida pela Covid-19.

A relação de Dilma com as filhas era de cumplicidade. Todos os dias falava com a filha que morava longe. Eram muito próximas. Ajudou as duas nos casamentos e era muito atenta às necessidades delas. “Ela brigava, porque eu era maluca, roqueira tatuada etc... queria que eu ficasse mais em casa. Dizia que tinha que eu deveria estar sempre com meu filho e não viajar tanto”. Lembra Ana Luiza.

Apesar de ter vivido pouco tempo no Pará tinha paixão por seu lugar de origem, das lembranças vividas lá e guardava o hábito de tomar café com farinha. Quando tinha a oportunidade de ir à Feira da Providência, virava criança de novo, se deliciando com os sabores paraenses. Na feira de São Cristóvão também encontrava alguns sabores que lhe remetiam felicidade! Enquanto as filhas comiam algum quitute comum ela se deliciava com Tacacá.

Dilma gostava de se divertir vendo TV, preferia as novelas. Era fã de Silvio Santos e assistia a vários programas como o “Roda a Roda” que era seu predileto. Também não perdia um Filme de Charles Bronson. Como boa virginiana gostava de tudo limpinho era chata com limpeza e organização, tudo na casa dela era sempre muito arrumadinho, no capricho. “Nunca deixou de sorrir e fazer o bem a qualquer pessoa”. Feliz apesar de tudo, tinha muitas amigas, era muito conhecida e querida no bairro”.

Dilma nasceu em Povoação de Ariri - Colares (PA) e faleceu em Rio de Janeiro (RJ), aos 74 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pela filha de Dilma, Ana Luiza Ferreira Bertoldo. Este tributo foi apurado por Letícia Virgínia, editado por Ana Clara Cavalcante, revisado por Magaly Alves da Silva Martins e moderado por Rayane Urani em 20 de dezembro de 2021.