1952 - 2020
“O que quer de presente?”, perguntava ele, cuja vida foi em si um grande presente.
Ele chegou pelo rio, vindo de terras distantes. No barco que o trouxe, a cozinheira, mulher forte e generosa de uma tradicional família de Parintins, percebeu esse homem, indígena de etnia diferente das que vivem na região, pode ver sua alma gentil e o levou para trabalhar e conviver com sua família.
Foi assim que, no início dos anos de 1990, Dionísio encontrou a família que seria a sua até que partisse, vítima da covid.
O seu Dion, amado e respeitado por amigos e parentes, era uma pessoa muito discreta e gentil. Falava muito baixinho e pouco. Mas estava sempre disposto a ajudar. Era o “Dion-Dion velho de guerra” para os mais jovens que cresceram recebendo dele atenção, carinho e exemplos.
Nunca se soube ao certo os motivos que o levaram a deixar seu povo e ir viver em outro lugar e outra cultura. Mas a verdade é que sempre honrou os saberes e valores que o formaram entre os Wapixana, sua provável etnia.
O depoimento da Sarah revela a admiração e o afeto que o seu Dion inspirava e o tanto de saudade que deixa. Ela divide o afeto por "Dion-Dion" com o irmão, o jornalista Phelipe Reis que publicou em suas redes, um belíssimo texto sobre a proximidade com a morte que vivemos durante a pandemia. Parte desse texto está reproduzido a seguir. Esses irmãos dividem o afeto por ele, assim como essa homenagem.
Ela conta de como ele se integrou à cultura local, se tornando torcedor do azul Caprichoso do Boi Bumbá, como os seus parentes. A família é Caprichoso aguerrida.
Dion e Sarah dividiam outra paixão, o Flamengo, time de futebol carioca. O flamengo foi o tema do último presente de aniversário que o Dion deu a ela. Uma toalha do time.
Sua generosidade, empenho e dedicação foram marcas que deixou nos “irmãos” mais jovens. A família, por brincadeira, dizia que ele era filho mais velho da mãe de Sarah e Phelipe mesmo ela sendo mais jovem que ele. Foi em sua casa que ele ganhou para si, um quarto só seu.
"Dionísio Batista de Souza, 68 anos, mais uma vítima que perdeu a luta contra a covid-19 e faleceu em Manaus, dia 27 de maio. Nosso amigo Dion era indígena da etnia wapixana. Sua história é muito peculiar e pouco conhecida. Sabe-se que há muitos anos ele deixou a parentela, em Roraima, e veio viajando, pegando carona, trabalhando de lugar em lugar, até chegar por essas bandas. Família de sangue não tinha por aqui. Foi acolhido por Vovô Romano e vovó Tereza, bem como pelas minhas tias. Passava um tempo na casa de uma, depois na casa de outra, conforme ia aparecendo algum trabalho. Um senhor de pouquíssimas palavras. Falava bem baixinho. Para entendê-lo era preciso ter habilidade. Homem religioso, frequentador da missa. Mariano por muito tempo, zeloso com a roupa e os sapatos brancos e a fita azul, sempre tudo bem limpinho e arrumado para acompanhar as procissões. Certa vez, puxei conversa com ele. Comecei a perguntar da vida, da família, das lembranças de sua terra... Muita coisa não consegui entender. Mas me marcou quando ele descreveu um episódio em que esteve muito doente, a ponto de quase morrer, mas foi cuidado por alguém. “Achava que ia morrer. Dona Guiomar, mãe pra mim. Ela que cuidou de mim”, me contou ele lagrimando. Desde então, ele passou a morar na casa da minha mãe. Seu Dion sempre gostava de ajudar, trabalhar, tecer cestas e paneros de cipó, com uma calmaria e tranquilidade que só ele tinha. Com o tempo, seguindo o costume de minha família, passou a frequentar a Igreja Batista. Se arrumava com a melhor roupa que tinha e ia cedo para pegar um bom lugar para assistir ao culto. Tinha um carinho muito grande por Elis e Joaquim. Todas as vezes que íamos visitar minha mãe, seu Dion perguntava pelas crianças e sempre abria um sorriso grande quando ganhava um abraço de Elis. Agora ele não está mais entre nós. Na luta contra a covid, fizemos tudo o que estava ao nosso alcance. Mas esse terrível vírus abreviou a partida do seu Dion. Seu corpo repousará em uma terra totalmente estranha a ele, longe de todos que foram abençoados com sua amizade por sua amizade por anos.
Phelipe Reis – Parintins, 27 de maio de 2020."
Dionísio nasceu em Roraima e faleceu em Manaus (AM), aos 68 anos, vítima do novo coronavírus.
Testemunho enviado pelos amigos de Dionísio, Sarah Marques Reis e Phelipe Reis. Este tributo foi apurado por Hélida Matta, editado por Giovana Madalosso e Hélida Matta , revisado por Lígia Franzin e moderado por Rayane Urani em 24 de junho de 2021.