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Dolores Gallego De Blas

1937 - 2021

Fazia comidas típicas, contava histórias sobre a Catalunha e às vezes soltava inesperadamente alguma palavra em catalão.

Dolores veio da Espanha com seus pais, uma irmã e o cunhado e, chegando em São Paulo, a família se fixou no bairro da Mooca e moraram todos juntos por toda a vida.

Ela contava pouco sobre o seu processo de mudança porque aconteceu sem grandes perrengues, mas sempre expressava a falta que sentia da Espanha, sua terra natal, principalmente da região da Catalunha, onde nasceu. Falava da beleza, da culinária, das danças típicas e contava que, quando jovem, amava dançava.

Tia Lolim, como costumava ser chamada, era muita apegada aos seus pais e cuidou deles até o final. Não se casou nem teve filhos, se dedicou aos três filhos da irmã como se fossem seus. Depois cuidou de todos os sete sobrinhos-netos e, uma delas, Cibele, conta saudosa: “Eu me recordo que todas as vezes que nossos pais saíam, ela sempre ficava conosco, nos colocava para dormir e lia lindas histórias quantas vezes fossem necessárias para que a gente dormisse. Como meu avô é falecido, minha avó e ela viveram juntas por muito tempo. Nos últimos anos, dedicou-se totalmente aos cuidados com sua irmã, Rosa. Desde o nascimento, elas nunca se separaram: brigavam e se amavam com a mesma intensidade”.

Ela tinha um grande amor pelos animais e sempre cuidava deles quando alguém da família viajava. Chegou a ter alguns, mas, seu amor especial foi por Teddy, um poodle preto genioso e bravo, que tratava como um filho e, depois que ele faleceu, nunca mais quis ter outro bicho de estimação. Dedicava todo seu afeto às flores e às plantas que eram cuidadas com muito amor.

Cibele se recorda, também, das frequentes reuniões de família: “Ela amava cozinhar e sempre estava disposta a nos alegrar com suas deliciosas receitas. Nós sempre nos reuníamos na casa delas, na Mooca, ou também em Caraguatatuba, onde minha família tem casa desde que chegaram ao Brasil. Ela fazia sempre uma deliciosa paella e croquetes. Às sextas-feiras, todos tomavam café da tarde na casa delas. Tia Lolim organizava tudo com o maior capricho para nos receber com pãozinho com molho de tomate, queijos, jamón, churros com chocolate quente, bolinhos de chuva e torta al minuto”.

Quando bem jovem trabalhou como costureira na Espanha. No Brasil, foi vendedora na antiga Sears ━ loja de departamentos e volta e meia, contava sobre o tempo em que se empregou e como comprou um fusca, seu primeiro e único carro.

Em casa consertava a roupa de todos, pois, além de uma costureira de mão-cheia, fazia inúmeras peças em crochê e tricô. Fez o enxoval de todos os sobrinhos e, ultimamente, para seus cinco sobrinhos-bisnetos Davi, Leo, Matheus, Lara e Fernanda, pelos quais tinha verdadeira paixão e que, nos últimos tempos, eram a sua grande alegria!

Seu amor se estendia a outros membros da família e amigos que também vieram da Espanha para o Brasil e, quando alguém ficava doente ou tinha que fazer alguma cirurgia que requisitava cuidados, logo Tia Lolim se colocava a postos para fazer o que fosse preciso. Qualquer um que ficasse doente, ela já preparava uma de suas sopas ou chás especiais, feitos com todo o amor desse mundo.

Dolores era dotada de uma personalidade forte e inspiradora e, quando tinha opinião sobre algo, ia até o fim para provar que estava certa. Quando ela se incomodava com alguma coisa, pegava no pé da pessoa até que houvesse mudança e melhora.

As sobrinhas brincavam que ela tinha o olho cirúrgico, pois, como não era contida, dizia na hora se tinham engordado ou emagrecido 1 kg que fosse e Cibele conta que chegou a se pesar depois de um de seus comentários e ela sempre tinha razão, até mesmo quando nem a própria pessoa tinha percebido.

Perfeccionista e metódica, tinha que ser tudo do jeito dela, e de brincadeira era até chamada Tia Cricri. Nunca se importou com o fato de ser solteira e sempre se amou muito! Como boa leonina, era extremamente vaidosa e se cuidava muito: estava sempre maquiada, com cabelo arrumado e bem vestida. Ela tinha roupas de cinquenta anos atrás que pareciam novas de tão bem cuidadas. Ficava toda contente quando era elogiada.

Em suas horas vagas, trabalhou por vinte anos no Centro Espírita Reencontro da Mooca. Lá, ela fazia diversos artesanatos, como crochês, costura e bordados, que eram vendidos nos bazares e revertidos para a caridade.

Gostava da música La Barca, do cantor Luís Miguel que ela adorava porque o marido de uma de suas sobrinhas e afilhada, que era cantor, cantou essa música para ela e sua irmã no seu próprio casamento, tornando-a especial.

Amava viajar e tinha era super fã de Montserrat, cidade montanhosa em Barcelona. Certa vez, quando Cibele ainda era adolescente foi com ela e sua avó conhecer a Espanha, onde permaneceram por um mês numa viagem incrível que vai ficar para sempre em minha memória. Depois disso, Tia Lolim continuou alimentando por muitos anos o grande desejo de voltar à Espanha e realizou o desejo em 2017, com a irmã e duas sobrinhas e, depois, novamente em 2019, na companhia de uma prima.

Cibele conclui sua homenagem destacando um dos ensinamentos deixados por Dolores: “Que não precisa ter filhos para ser mãe: ela foi uma mãe, avó e bisavó tão dedicada como se nós fôssemos seus”.

Dolores nasceu em Barcelona (Espanha) e faleceu em São Paulo (SP), aos 84 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pela sobrinha-neta de Dolores, Cibele Sanchez Oliveira Rios. Este tributo foi apurado por Andressa Vieira, editado por Vera Dias , revisado por Bettina Florenzano e moderado por Rayane Urani em 25 de julho de 2022.