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Donatila Lima dos Santos

1944 - 2020

Teve coragem para mudar de vida e viveu para os filhos.

A vida de Donatila teve muitas histórias. Todas elas vividas e superadas com garra e valentia. Começou em Boa Vista do Tupim, na Bahia, onde nasceu. Depois, passou por outra cidadezinha, Itaberaba, lugar no qual viveu até os 37 anos — em 1982, determinada a ter uma vida melhor e proporcionar mais oportunidades aos filhos, teve muita coragem. Separou-se do marido e mudou-se sozinha para São Paulo.

Por um ano, 1.775 km separavam Donatila das nove crianças. Eram dois empregos: de dia em uma empresa, à noite em casa de família. Nesse tempo, juntou dinheiro, comprou móveis e alugou uma casa. Começava um novo capítulo. Voltou à Bahia para buscar Luis Alberto, Antonio, Atanael, Carlos Fernando, Antonizia, José Rubens, Antonieta, Tania Maria e Antonielson. O percurso até a capital paulista foi feito de ônibus, por quase três dias, com malas e uma vasilha de farinha e frango frito.

Guerreira e determinada, esforçou-se para proporcionar vida digna e estudos a eles. Saía cedo, deixando o almoço pronto. Arroz e feijão nunca faltaram. A mistura da noite, às vezes, só chegava com ela, à meia-noite. E lá estavam os filhos, esperando o que sobrava da família em que trabalhava, para comerem juntos.

E assim foram fazendo, até os mais velhos começarem a trabalhar e ajudar nas contas, e ela passar no concurso para auxiliar de farmácia em um hospital. Na vontade de ter casa própria, pegou a herança dos pais e deu entrada em um imóvel na favela de Heliópolis, mas foi enganada por um estelionatário. Com os filhos, reergueu-se, batalhou e finalmente conquistou seu próprio terreno. Os materiais para construção, pegou fiado. E de pouco em pouco foram dando um jeito.

A maior preocupação de Donatila era não fazer valer a previsão de que seus pequenos “virariam vagabundos na cidade grande”. Ela não só conseguiu isso, como fez mais.

Além dos de sangue, tinha muitos “filhos extras”. Fazendo valer a máxima de que “em coração de mãe sempre cabe mais um”, estava sempre de portas abertas para acolher, dentro da sua casa, quem precisasse de abrigo, sem pedir nada em troca.

Depois de perder uma filha e passar pela maior dor que uma mãe pode experimentar, levantou-se mais uma vez e cuidou de dois dos 15 netos. Com todos encaminhados, começou a viver a própria vida.

Até namorou, mas nunca se casou de novo. Aposentou-se, conquistou independência. Cuidava da saúde, curtia a família, fazia hidroginástica e viajava. Repetiu diversas vezes o caminho até a cidade natal, mas seu coração pertencia aos filhos e ela sempre voltava. Comprou uma casa em Catanduva, onde ia passar os finais de semana. Em 2012 voou pela primeira vez. Perdeu o medo de avião e, convencida pelo filho Antonio, viajou para os Estados Unidos. Aos 69 anos pôde rever uma prima que não via há 27 e conheceu a Disney.

Dizia que queria morrer aos 100 anos. Partiu aos 75, vítima do coronavírus, deixando a certeza de que fez tudo o que queria e foi muito grata por tudo que viveu. Seu maior prazer foi ter vencido.



O respeito acompanhava desde o nome dessa mãe exemplar e rigorosa ao cuidar da família.

Não é por acaso que Donatila recebera um nome que expressava respeito já nas primeiras sílabas: Dona. Para a baiana que, em 1983, saiu de uma cidade pequena rumo à agitada São Paulo, com nove filhos que dependiam exclusivamente dela, ter o controle da situação não era questão de opção.

Com muito empenho e travando batalhas diárias, deu sustento à família como funcionária do lar, auxiliar de produção e, por último, como funcionária pública, desempenhando a função de auxiliar de farmácia.

Justamente por ser responsável por chefiar uma tropa, que incluíam os filhos, irmãos e outros familiares que ela sempre agregava, era comparada a um sargento, precisava ser rígida e impor ordens. Mas para além dessa necessidade de controlar tanta gente pelas quais Donatila se responsabilizava, foi uma mulher que soube demonstrar carinho e ternura.

Era um prazer para ela prestar favores e estava sempre juntando coisas para doar a quem mais necessitasse, como roupas, sapatos e utensílios domésticos. Quando viajava para Bahia, era seu costume distribuir tudo o que recolhia.

Para quem queria viver pelo menos até os 100 anos, como era o desejo de Donatila, passar por novas experiências e se lançar a novos desafios estava nos seus planos. Foi assim em 2013, quando viajou para os Estados Unidos da América pela primeira vez, retornando com a indignação de quem não compreendia a língua e desafiando-se a estudar o inglês aos 69 anos. Embora não tenha dado continuidade à ideia, o seu ímpeto de visar algo novo, mostrava o quanto era uma mulher geniosa que se engrandecia com o passar dos anos.

Foi também nessa viagem internacional que Antonio, um de seus filhos, registrou uma cena aparentemente simples, mas que representa triunfo em uma trajetória marcada por muita luta. Na saída de um restaurante na cidade de Orlando, a imagem de sua mãe saboreando uma grande coxa de peru trouxe recordações da chegada a São Paulo. Durante essa profunda mudança na vida dela e dos nove filhos que a acompanhavam, Donatila carregava apenas uma farofa de frango para comer durante a viagem. Orientava também aos filhos que não descessem nas paradas que o ônibus fazia, pelo fato de não ter dinheiro para comprar lanches.

A imagem de Donatila em outro continente desfrutando daquele alimento tornou-se o retrato de uma grande mulher que pôde apreciar as recompensas de uma vida vencida a muito custo.

Deixou um legado de acolhimento aos desamparados, pois fazia de sua casa um refúgio temporário, até que aqueles que precisassem de ajuda conseguissem seguir seus rumos.

Uma mulher que será eternamente lembrada por conduzir sua jornada com valentia e generosidade.

Donatila nasceu em Boa Vista do Tupim (BA) e faleceu em São Paulo (SP), aos 75 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pelo filho de Donatila, Antonio Benedito Lima Costa. Este tributo foi apurado por Mariana Campolina Durães e Júllia Cássia, editado por Mariana Campolina Durães e Júllia Cássia (respectivamente), revisado por Paola Mariz e Acácia Montagnolli e moderado por Lígia Franzin em 1 de abril de 2021.