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Dorival Martins

1937 - 2021

Ele tinha uma paixão por querosene, pedia o produto de presente em todas as datas comemorativas possíveis.

No dia 16 de outubro de 1937 nascia na Fazenda do Bananal, cidade de Bariri (SP), o terceiro de quatro filhos de “seu” Mané e dona Virgínia, Dorival Martins. Passou os primeiros cinco anos de sua vida correndo por entre as árvores e comendo fruta no pé. Em sua cabecinha de criança inocente, estava bom assim, do jeito que era. Mas seus pais, um pouco mais vividos, queriam oportunidades melhores para seus filhos, e, seguindo esse instinto, deixaram o interior para tentar a sorte na cidade grande.

Levando uma vida modesta e, por muitas vezes, difícil, a família criou raízes em São Paulo. Dorival escondia as privações e o preconceito que passou durante sua infância, rindo das próprias dificuldades em histórias bem-humoradas. Dizia com orgulho que morava no alto de Santana (parte nobre da zona norte da cidade), só que no porão. Viveram ali até seus 16 anos, quando se mudaram para o bairro do Tucuruvi.

O menino travesso, que no interior subia em árvores, na cidade teve que começar a trabalhar cedo. Aos 14 anos conseguiu seu primeiro emprego; aos 17, entrou em uma indústria de máquinas gráficas como ajustador mecânico e lá trabalhou por mais de trinta anos, até quando se aposentou para, posteriormente, montar seu próprio negócio. Gostava do que fazia, contava com nostalgia sobre suas viagens a trabalho e os chefes alemães. Com sua dedicação conquistou muita coisa durante a vida. Construiu a casa onde viveu com sua esposa e filhos, uma outra na praia, depois uma chácara. Tudo com muita força de vontade e grande parte, com suas próprias mãos.

Conheceu em um baile de festa junina, Vilma Luiza, uma jovem encantadora por quem se apaixonou. E, quem diria que, depois de três recusas por parte dela, eles se casariam e passariam os próximos sessenta anos de suas vidas juntos? Como todo casal, tiveram seus altos e baixos. Mas, conforme a própria dona Vilma citou uma vez: ninguém vive tanto tempo junto com outra pessoa se não houver amor. Tiveram três filhos: Claudia, Renato e Sílvia. Dorival proporcionou para sua esposa e filhos o que nem sempre seus pais puderam lhe dar. Suas filhas recordam com ternura dos passeios de carro aos domingos. Acordavam cedo, faziam lanches com sua mãe e partiam sem destino. Quando a fome batia, paravam e comiam os sanduíches que haviam levado. Outras vezes, iam até a praia. E o pai sempre levava um galão azul de água limpa para poderem se lavar depois de saírem do mar. Entre pacotes de confetes dados na porta de bailes de carnaval, filmes de faroeste e bênçãos pedidas antes de dormir, moram muitas memórias vividas entre esse pai, que de sua maneira sempre tentou fazer o melhor, e seus filhos.

Muitas são as memórias também, entre seus cinco netos e seu bisneto. Suas manias são algumas das coisas mais citadas entre as gerações mais novas. Como comer demasiadamente algo que gostava até passar mal ou sua paixão por querosene. Amava construções e trens. Ia, todas as tardes, acompanhar de perto, o progresso da obra no Shopping metrô Tucuruvi. Dorival foi avô e pai para a sua neta mais nova. Buscava na escola e não perdia uma festinha. Sua neta mais velha lembra que ele gostava de irritar a sua vó e cita uma das vezes que ficou gravada em sua memória: quando ele perguntou várias vezes o que era um puxa-saco de parede e para que servia, até sua esposa ficar com raiva. Depois de um tempo, ele levou sua neta para a estação do metrô e, ao deixá-la, disse em meio a risos, que quando voltasse para casa, perguntaria novamente o que era aquilo pendurado na parede.

Dorival Martins passou por muitos fatos históricos antes da pandemia do novo coronavírus: uma guerra mundial, ditadura militar no Brasil, viu a conquista dos cinco títulos do país na copa, entre tantos outros acontecimentos. Deixou exemplo de vida honesta, de trabalho e dedicação a todos que o conheceram e o amaram.

Dorival nasceu em Bariri (SP) e faleceu em São Paulo (SP), aos 83 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela esposa de Dorival, Vilma Pontone Martins. Este texto foi apurado e escrito por Talita Martins Salvador, revisado por Bettina Florenzano e moderado por Rayane Urani em 21 de fevereiro de 2022.