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Eduardo Arroyo Puga

1944 - 2020

Homem com alma de menino, Nino se tornou um forte elo de união em sua família.

Aos quatro meses de idade foi diagnosticado com poliomielite, a doença viral contagiosa que foi bastante temida na época, pois era fatal para inúmeras crianças e causava a paralisia infantil em tantas outras que sobreviviam, com o comprometimento do sistema neurológico e a paralisia dos movimentos musculares. Ainda não existia a vacina que seria desenvolvida por Sabin nos anos 60, a famosa “gotinha”, que ajudou a erradicar a doença no Brasil e em quase todos os países do mundo. Para Nino, como era chamado entre os seus, não houve cura. Na ocasião, os médicos lhe deram uma expectativa de no máximo vinte anos de vida.

Assim, coube ao menino crescer com limitações: não andava, tornou-se cadeirante, tinha bastante dificuldade para falar, não frequentava uma escola, não tinha uma profissão, não encontrou um amor romântico, não teve filhos. Talvez essa impossibilidade de ter uma vida “normal” tenha estimulado a imaginação em sua realidade interior e a curiosidade pela vida alheia. Observador das peculiaridades dos seres humanos, entendia perfeitamente tudo que diziam ao redor. Sociável, ficava sentado em sua cadeira de rodas no quintal, observando curioso o fluir da vida entre os passantes do lado de fora de seu mundo. Criou uma linguagem própria de palavras inventadas e frases incompletas para se comunicar, que os parentes entendiam muito bem. Fofocas eram com ele mesmo. Grande era o seu talento para fazer fuxicos inocentes que divertiam a todos e fazia circular qualquer fato novo que acontecia entre os familiares: divórcios, filhos fora do casamento, quem se abriu e assumiu a homossexualidade ou a bissexualidade; o negócio dele era contar as novidades em tom de quem trazia à tona um grande segredo.

Apelidar as pessoas era outra característica divertida dele, renomeava a todos: “Pai Céu Deus”, “Totonho Adalton”, “Tita Ana”, “Fia Sueli”; “Nenê Isabel”, “Loro” para qualquer palmeirense adulto, “Poquinho” para os palmeirenses jovens e “Ota" para se referir a uma segunda mulher de alguém ou outra que tivesse conhecido recentemente.

Os vinte anos de vida inicialmente previstos foram se expandindo para mais 5, mais 10, mais 15, mais 20... e Nino chegou aos 75. Morou com os pais enquanto eles estavam vivos, sempre com a presença de uma cuidadora e também de suas três irmãs que se revezavam nas visitas: Isabel, Ana e Sueli. Cada parente em sua medida, todos da família o visitavam com frequência e permaneciam por perto.

As deficiências de Nino foram compensadas ao longo da vida por seu lado irreverente, um bom humor e um sorriso que raramente se ausentava de seu rosto. A não ser quando o Corinthians, seu time de paixão, perdia um jogo, aí sim ficava emburrado, dando a entender com gestos próprios que o resultado tinha sido injusto, roubado. Antes dos jogos, pedia para quem estivesse ao lado dele acender uma vela e assistir junto, para ajudar a vibrar as boas energias de vitória.

Era perceptível nele uma saúde que transcendia o corpo físico e contagiava quem estivesse ao seu redor. Para os tios, primos e sobrinhos que se mobilizavam constantemente para incluí-lo em todos os eventos familiares e investir em seu bem-estar, ele nunca foi um peso, ao contrário, a presença dele renovava a oportunidade de um convívio cheio de alegria. Gostava de ser tocado, de ser abraçado, de dar a mão. Puro como uma criança, jogava dominó, assistia TV, comemorava a vida, o ano inteiro aguardando pelo bolo de seu próximo aniversário.

É unanimidade na família que a deficiência de Nino nunca limitou o seu poder de interação e ele será sempre lembrado, amado e honrado como aquele que ensinou o valor da união e a pureza do afeto.

Eduardo nasceu em Andradina (SP) e faleceu em São Paulo (SP), aos 75 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela sobrinha-neta de Eduardo, Marcella Zanoti. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Bettina Turner, revisado por Lígia Franzin e moderado por Rayane Urani em 25 de dezembro de 2020.