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Ejeciano Cicero Serafim

1955 - 2020

Aquele que sempre gostou de tudo calculado, fez do grande amor da sua vida o melhor de seus planos

Sabe aquele dito popular, “é melhor sobrar do que faltar”? Essa era a especialidade de Ejeciano — ou melhor, “Gildo” —, que colocou em prática de uma forma nada comum. Entre as muitas manias dele, um certo hábito de prevenção que ganhou muito assunto e risada na família era o de ter sempre em dobro o gás de cozinha e o galão de água.

Com Gildo, não tinha essa história de ter “um só em uso e pronto”, como ele mesmo dizia: “Se o gás e a água acabarem, você compra outro logo para colocar na reserva”. Esse jeito metódico de ser foi um dos traços que marcaram a passagem de Ejeciano entre aqueles que tanto o admiravam e riam de suas manias. Além de curioso e desses certos hábitos, ele tinha também seu apelido — sempre foi um mistério para a família como Ejeciano se transformou em “Gildo”.

Extremamente organizado, Gildo não tinha sossego nem quando estavam reunidos em família jogando a tradicional cacheta — jogo de baralho de três pares que sempre fez sucesso nos churrascos da família. Ele se encarregava de fazer planilhas à mão para ter o controle do jogo todo registrado e, de quebra, vigiar os participantes que não pensavam duas vezes em trapacear.

Mas seu modo cuidadoso se estendeu em outras áreas da vida, e a principal foi a forma que tratava a família. Foi pai duas vezes, de Bruna e Priscilla — sementes de um amor que completou 40 anos de união no dia 26 de abril de 2020. Conseguiu estar presente nas bodas de esmeralda e celebrar a quarta década ao lado de Mirian, a companheira de sua vida.

Além de pai e esposo presente e amoroso, Gildo foi uma figura muito especial para a afilhada e sobrinha Mariana. Cumprindo o papel acolhedor de padrinho, abrigou física e emocionalmente a família após a morte de seu irmão, pai da menina. Diante da dor imensurável da perda do irmão, a solidariedade que transbordava em seu peito o fez encontrar forças para ser apoio e proteção para a família que seu irmão deixou tão precocemente.

“Essa família era linda demais”, afirma Mariana emocionada ao lembrar do carinho partilhado com sua família naquele e em todos os outros momentos em que seu padrinho esteve presente, alegrando sua vida.

Risadas não faltaram enquanto Ejeciano esteve presente. E, muitas vezes, ele não precisava falar nada para provocar risos na família. Ele dormia em todos os lugares — às vezes, na frente de todo mundo num típico almoço de domingo, com grande parte da família ali, bem próxima, conversando. Essa sonolência de Gildo rendeu até uma gravação memorável, na qual ele dormia enquanto desfrutava de outro hábito que não largava: palitar os dentes.

Registros como esse, hoje, são recordações do que foi esse jeito “Gildo” de ser.

Eternizava tudo que fazia parte, e com o trabalho não foi diferente. Trabalhou com mecânica industrial, e o local de trabalho acabou por fazer parte da família, assim como o chefe e outros colegas de profissão. Mesmo aposentado, não puxou o freio e continuou trabalhando. Também era ele quem cuidava das compras em casa — gostava de ter as coisas sob controle.

Entre as tentações que “Gildo” não resistia, estavam o chocolate e curtir uma praia.

Mas a paixão da vida dele, sem dúvida, era o carro, conhecido “gol bolinha” e que cuidava como um bebê. Admirava tanto o modelo e a marca que, quando fez a troca, permaneceu com a mesma preferência, só que em uma versão mais atualizada.

Vindo do sertão de Alagoas, da pequena cidade de Maravilha, Ejeciano gostava de passar adiante as aventuras vividas na infância. Uma delas, em especial, contava acompanhado de muitas gargalhadas: a confusão que se meteu quando decidiu subir na carroça de um conhecido sem avisá-lo, deduzindo que estaria indo para o mesmo lugar que ele. Em um certo ponto da viagem, Gildo percebeu que o conhecido ia para outro lugar. Foi aí que decidiu se jogar da carroça em movimento, colecionando belos arranhões que o chão de terra marcou.

Agora, as aventuras vividas ecoam pela eternidade para todos que foram ouvintes de suas histórias.

Vencera várias batalhas na guerra contra a leucemia, mas encontrou no caminho um adversário maior. Mirian, o grande amor de sua vida, sente a ausência do café preparado com antecedência para ela todas as manhãs. Ele fazia questão de acordar cedo para isso.

O “Gigante”, como era conhecido por alguns devido à sua altura, passou por esse mundo para provar que existiu e sempre existirá nele algo além da fragilidade de um corpo físico: a grandeza de sua alma.

Ejeciano nasceu em Maravilha (AL) e faleceu em São Paulo (SP), aos 65 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela afilhada e sobrinha de Ejeciano, Mariana Alencar Silva. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Júllia Cássia, revisado por Gabriela Carneiro e moderado por Rayane Urani em 25 de agosto de 2020.