1926 - 2020
Notável barítono, professor de técnica vocal e interpretação. Um paraguaio que se dedicou à música brasileira.
Esta é uma carta aberta da aluna Dalva Maria para o professor de técnica vocal, Eladio:
A notícia da morte de Eladio causou tanto impacto quanto a força de seu trabalho em minha vida.
Fiz com ele o curso de canto, nas férias de 2014, na Fundação de Educação Artística. Em seguida, o curso de declamatória e um período de aulas quinzenais em grupo, cerca de um ano sob sua batuta.
Eu nem pestanejava nas aulas, tamanha avidez pelas orientações. Aquele disposto senhor ensinava matéria artística e de vida. Jovem, dispensava o senhor.
Sua enorme bagagem não lhe pesava. Repartia seu conhecimento de forma natural, como alguém que caminha deixando pérolas a cada passo. Uma trilha delas.
Ele nos mantinha acesos. Eu queria entender onde se ancorava sua chama, de onde derivava o fogo de seu trabalho. O seu fazer diário parecia ser parte do seu segredo de vitalidade. Ele sempre dizia: "O querer não está com nada, a solução é fazer!", "Cuidado com os truques do raciocínio, ele (o raciocínio) é um chato, desfaz do repetir." E "Querer não é poder, poder é fazer!"
Suas aulas eram plenas de sua voz. Suas palavras eram bem-colocadas, justas. Creio ser respeito à própria voz. Com ela, abriu caminhos, conquistou troféus, posição. Mas o mais importante foi conquistar para si a sua voz. Ela era seu pulso. Soava límpida, altiva, vigorosa. Conforme o texto, era doce como uma canção de ninar, delicada como um pássaro ferido. Era matizada nas frases sensuais. Um amante, um guerreiro, um enigma.
Ele sabia que todos podíamos cantar, desde que trabalhássemos para isso. Ele ouvia o potencial de cada um.
Suas aulas eram vivenciais, corpos presentes. Sustentava que o canto era sentido e não pensado. A atenção sobre o corpo era o ponto de partida do trabalho vocal. Eladio era corpo. Referia-se à sexualidade com elegante naturalidade. Opunha-se à culpa religiosa, ao rebaixamento alienante diante Deus. Para nossos exercícios, a cada aula ele inventava frases, que repetíamos uma a uma. Lembro-me dessas: "Minha tia deixou-me como herança muitos pensamentos. Religiosos. Minha tia, nem ninguém de minha família, mente". Assim, seu trabalho era entremeado de humor, ironia e liberdade. De canto, prosa e poesia.
Ao ouvi-lo declamar “O Rio da Minha Aldeia” de Fernando Pessoa, eu me transportava para a minha própria aldeia, minhas origens. Olhava com olhos novos as águas de minha vida. É como ele dizia: "A gente deve amar o que tem".
Não raro, escolhia a música “Carinhoso”, de Pixinguinha e João de Barro, para o grupo exercitar. Enchia seus pulmões de amor e nós o seguíamos.
Declamava “Irene no Céu”, de Manoel Bandeira, para explorar recursos de interpretação. Cantava com doçura a morte nas canções de Dorival Caymmi. Flertava com o mistério.
Ele, que tomou a voz de amor e de trabalho, tratou, preservou e libertou vozes, pessoas. De célebres artistas, de professoras cansadas. Eladio é fonte de inspiração e de força para realizá-la.
Nas nossas últimas aulas, quando ele pestanejava, eu desviava a atenção. Ele retomava o andamento e a confiança.
Ele se importava com o aluno. Em seu aniversário de 90 anos, depois de longo período sem encontrá-lo, ele me perguntou sobre uma passagem de minha vida.
Pela soma de seus anos, eu cogitava seu fim, com pesar. Ele se “encantou” no mesmo dia do meu pai. Foi uma dor sobreposta. Eu o tinha mesmo nesse lugar de pai. Ele o foi em boa medida, sendo atencioso, firme, genuíno em sua expressão. Foi inclemente com a injustiça, a preguiça, a desonestidade.
Não há tempo capaz de apagar minhas memórias desse velho senhor. Eu o verei andando garboso da Fundação ao hotel onde se hospedava na Avenida Getúlio Vargas. Com seu chapéu, propósito, retidão.
Eu lhe agradeço, Eladio, em nome do meu país. Você deixou cedo o Paraguai e abraçou a voz brasileira. Trabalhou por nossa música e cantores, por nossa educação, nossa memória. Você exaltou o coro e a brasilidade da nossa voz.
Seguimos cantando seu nome, Eladio, nome de nota musical.
"Cada um de nós é diferente do outro. Não se pode impedir a diferença, as vozes diferentes, mas precisamos fazer o mesmo trabalho. É o que importa." (Eladio Pérez-González)
Eladio nasceu em Assunção (Paraguai) e faleceu no Rio de Janeiro (RJ), aos 94 anos, vítima do novo coronavírus.
Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela aluna de Eladio, Dalva Maria Madureira Ottoni. Este texto foi apurado e escrito por Lígia Franzin, revisado por Ana Macarini e moderado por Rayane Urani em 6 de janeiro de 2021.