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Elazir Gonçalves

1928 - 2020

Seus discursos nas festas de fim de ano inspiravam os sobrinhos, para quem também foi mãe.

Elazir não teve filhos, mas foi uma mãe para os sobrinhos Érica, Ricardo e Fábio, e para os sobrinhos-netos João Ricardo, Manuella, Marianne, Kamila e Guilherme. A família sempre morou na Vila José Fercher, no bairro Mosela, em Petrópolis, cidade serrana do Rio de Janeiro. E a proximidade entre as casas proporcionou uma convivência cotidiana, intensa e cheia de afeto.

Quando os cinco sobrinhos-netos ainda eram crianças, a hora do almoço era cheia de confusões, pois Elazir tentava controlar a algazarra, muitas vezes sem sucesso. A meninada aprontava e saía correndo para escapar dos pitos da tia, que não se fazia de rogada e corria atrás dos desobedientes.

Passado o tempo, e com os sobrinhos já adultos, havia também a questão dos palavrões. “Falar palavrão perto dela era a morte”, conta entre risos a sobrinha Érica.

Um exemplo da intensidade da relação de Elazir com os sobrinhos é narrado por João Ricardo. A tia sempre buscava tratamentos alternativos. “Ela dizia que a natureza é o que cura. E isso sempre ficou marcado em mim.” Tanto que decidiu fazer da Acupuntura e Medicina Chinesa sua profissão. Em muitos momentos cuidou da tia usando algumas delas. Recorda sorrindo que Elazir era muito inquieta e não ficava parada nem nas sessões com as agulhas.

As brincadeiras com a turma de sobrinhos ficaram registradas em vídeo. Em um deles, Elazir repreende uma das sobrinhas por rebolar, mas para dar a bronca imita o rebolado da menina. Em outro, bem-humorada, finge que vai pegar a sobrinha-bisneta que tentara lhe pregar uma peça.

Nas festas de fim de ano, o discurso da tia Elazir era célebre. Ela procurava um local em que a maioria das pessoas pudesse vê-la e fazia questão da atenção dos presentes. Em suas falas, dizia que todos tinham de ter juízo, ser honestos e ter humildade. "Falava da importância de honrar o próprio nome e sempre ter o respeito das pessoas. Porque o nome e o respeito são tudo o que uma pessoa tem”, descreve Marianne.

A relação com a costura também marca a vida de Elazir, juntamente com a irmã Isaura. Na máquina de costura delas foram produzidos incontáveis blazers, ternos femininos, saias, blusas. “Costureira de mão cheia, trabalhou durante anos e anos na Vila Verde Confecções”, recorda a sobrinha Érica. "Deixava todos encantados com sua paciência e capricho.”

Mas não era somente no ateliê de costura que Elazir e Isaura estavam juntas. As irmãs eram muito parceiras e construíram uma amizade linda. “Quantas conversas, quantas caminhadas... Tudo faziam juntas, era lindo de ver”, lembra Érica. Como Elazir nasceu no dia 20 de setembro e Isaura no dia 24, a comemoração dos aniversários era sempre em conjunto. Houve um deles em que o tema da decoração do bolo foi exatamente a máquina de costura.

Nos momentos de folga e descanso, Elazir amava ficar na janela do seu quarto vendo os passarinhos e brincando com a cadela Nicole. Todos os dias alimentava os pássaros com migalhas de pão, cuidadosamente colocadas no tronco de uma pitangueira.

Não dá para falar de Elazir sem destacar o hábito de tomar sol. Quando mais nova, ia sempre à praia. É que a confecção na qual trabalhava mudou-se de Petrópolis para a capital do Rio de Janeiro. Depois de aposentada, novamente em Petrópolis, buscava os locais da casa onde houvesse sol. Não importava se estava fraco ou forte: ficava ali sentada se aquecendo. Em muitos desses momentos, contava com a companhia de algum dos sobrinhos-netos, já adultos, garantindo momentos agradáveis de boas conversas.

"Sempre deu conselhos muito bons, lições de vida”, conta Marianne, que ao relembrar os momentos ao sol ao lado da tia consegue até sentir o gosto do biscoito cream cracker que comiam juntas.

Por falar em sabores e para não deixar de narrar uma outra peculiaridade, Elazir tinha um apreço especial por jiló. Exigente, queria que a refeição “estivesse sempre pelando de quente”. Muitas vezes a comida tinha acabado de sair do fogão e ela reclamava que estava fria.

Voltemos ao sol: a última foto de Elazir, na porta de casa, parece uma síntese da vida dela. Aparece sentada em sua cadeira de ferro, tomando sol, degustando o café da manhã, acompanhada pela irmã Isaura. Bem perto dali, embora não na foto, vários sobrinhos a cercavam.

Na lembrança da família, Elazir, a baixinha carinhosamente chamada de Tatu-Bolinha, segue amada e presente. Na luz e no calor do sol, na tatuagem de máquina de costura no braço de Marianne, nos registros feitos por todos.

Elazir nasceu em Petrópolis (RJ) e faleceu em Petrópolis (RJ), aos 92 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela sobrinha-neta de Elazir, Marianne Gonçalves. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Ernesto Marques, revisado por Fernanda Ravagnani e moderado por Rayane Urani em 30 de junho de 2021.