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Enos Soares da Silva Junior

1971 - 2021

De manhã, enquanto se aprontava para ir trabalhar, toda a casa acordava com o aroma do seu perfume.

Foi no vai e vem entre as cidades de Teresina, no Piauí e Timon, no Maranhão, separadas somente pelas águas do rio Parnaíba, que tudo aconteceu. O papel de filho, irmão, esposo e pai amoroso, bem como o de militar dedicado, é parte da história de Enos.

Ele era o quarto dos seis filhos de Enos e Emília, e herdou o nome do pai. Depois de casado, o mesmo nome foi dado ao filho mais novo, Enos Neto, fruto de seu amor pela esposa Marcilene, que também gerou as filhas Ana Carolina e Ingrid. Um pouco mais de tempo e chegaram os netos Ana Júlia e Arthur Gabriel.

Mesmo depois de casado, diariamente Enos ia visitar os pais, que moravam perto de sua casa. Momento de procurar saber como estavam, se precisavam de alguma coisa, provar alguma delícia preparada pela mãe. Situação semelhante acontecia com visitas regulares à casa dos irmãos.

O certo é que Enos era dessas pessoas que todo mundo queria ter por perto, conta Enos Neto. Ele relembra que o jeito acolhedor e agregador do pai o aproximava das pessoas. Os churrascos de família realizados no terraço da casa eram uma constante. Tudo com muita alegria, brincadeiras e piadas que Enos inventava na hora a partir de particularidades de cada um dos familiares ou de algum fato que acontecesse.

Com os amigos dos filhos não era diferente. Bastava um deles chegar em casa e apresentar o amigo que logo Enos puxava conversa. E do seu jeito, "providenciava alguma coisa para um lanche e procurava um laço com quem chegasse”, conta orgulhoso Enos Neto.

Outra maneira de acolher as pessoas e fazer novas amizades acontecia por meio das ajudas que prestava a quem precisasse. É que, ao longo da vida, Enos aprendeu de tudo um pouco, sendo capaz de fazer as vezes de eletricista, bombeiro, mecânico de automóvel. Ele não poupava esforços para ajudar alguém. Um exemplo disso aconteceu quando, certa vez, saiu debaixo de uma chuva torrencial para resolver um problema mecânico no carro de um sobrinho.

Voltando um pouco na linha do tempo, não é possível deixar de contar sobre o início do relacionamento de Enos e Marcilene. Os dois estavam no Ensino Médio e eram colegas de sala. Bonitão, musculoso e galante, Enos era o centro das atenções das moças do colégio e do bairro. No cotidiano escolar, inicialmente, Marcilene não tinha muita empatia por ele. Certo dia o “nata pura” resolveu ocupar a cadeira à frente de onde ela estava assentada, colocando os pés para trás. Sorrindo, Enos Neto diz que “minha mãe conta que se apaixonou pelos pés dele”. Com as estratégias adolescentes de plantar amor no coração, eles foram se enamorando. O amor foi tanto, que dois anos depois veio o casamento.

Desde sempre, experimentaram um relacionamento amoroso e respeitoso, marcado por momentos de lazer. Os dois gostavam muito de dançar e até participavam de um grupo de dança. Inesquecível o gosto de Enos pelas músicas dos anos 80 e 90, que eles dançavam enquanto ouviam. Frequentemente, escolhiam algum restaurante para almoçar ou jantar. Eram comuns também os passeios em centros comerciais e idas às festas que aconteciam na região.

As viagens foram muitas. Marcilene organizava diversas excursões para cidades litorâneas. “O dinheiro que ganhava com as viagens bancava a viagem da família”, explica Enos Neto. E assim, nas férias, Enos, a esposa e os filhos viviam momentos de puro desfrute.

No cotidiano da casa, os jogos de carta e de tabuleiro eram momentos frequentes de diversão e convívio familiar. Nos jogos de baralho, a regra era que o ganhador da partida escolhia uma música para tocar. Com seu jeito brincalhão, quando Enos ganhava era hora de ouvir música brega. A reclamação e as gargalhadas tomavam conta da mesa pois todos já sabiam que, até o final da próxima rodada de cartas, era tempo de escutar canções de Frankito Lopes, o índio apaixonado. Enos também gostava de jogos de computador. Entre os seus preferidos estavam os de corrida de carro e de guerra.

Como pai, ele foi presente e amigo. Ao longo das diversas etapas de vida dos filhos estava sempre por perto e disposto a “compartilhar as novidades, brincar, sorrir, abraçar, beijar...” Enos Neto relembra saudoso que “foi meu pai que me ensinou a andar de bicicleta e dirigir carro. No dia a dia, tudo que ele ia fazer chamava a gente para aprender. E sempre dizia que 'isso aqui você não aprende na escola'".

Entre as memórias que Enos Neto guarda do pai está o dia em que ele ainda não trabalhava e estava sem dinheiro para sair com a namorada. Ele foi até o pai e contou o que se passava. “Ele pegou o dinheiro que tinha no bolso e me deu”.

Enos era militar e todos os dias acordava às 6hs da manhã para vestir a farda e ir trabalhar. Enquanto se aprontava, “a casa toda despertava com o cheiro do perfume que ele adorava usar”, conta Enos Neto, acrescentando que o avô sempre dizia que “Enos parece filho de barbeiro, pois só anda perfumado”.

Tudo o que aprendeu e guardou de sua trajetória pessoal o levou para sua atuação como policial. Sempre dedicado, ao longo da carreira, ele encontrou o seu lugar dentro da corporação. Partindo das atividades de ronda e cuidados com a segurança da cidade, pouco a pouco o lado educador de Enos foi desabrochando.

Ele foi um dos primeiros militares do Maranhão a fazer o curso para ser instrutor do estado no Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência – PROERD. E na atuação como policial-educador foi o primeiro a formar uma turma com mais de mil alunos e, por isso, ficou muito conhecido nas escolas maranhenses e ganhou reconhecimento em Timon e outras cidades. O início de suas aulas era sempre marcado pela frase: “Luz, câmera... ação!”. Uma espécie de sinal para que os jovens ficassem quietos e em silêncio. A paixão pelo trabalho também deu a Enos o codinome de “Leão do PROERD” e fez dele um dos instrutores nos cursos de formação de novos policiais para atuação no programa.

Um pouco mais tarde, passou a trabalhar como auxiliar da coordenação pedagógica do Colégio Tiradentes V, localizado na cidade de Timon. Com olhar atento e cuidadoso, além da convivência diária com os estudantes, Enos também identificava as necessidades de reparos na escola e não media esforços para garantir que tudo estivesse funcionando perfeitamente. “Se um ventilador estragasse, por exemplo, às vezes ele saía de casa no final de semana e ia para a escola consertar a fim de que, na segunda-feira, o aparelho estivesse funcionando e garantisse o conforto dos alunos”, conta com orgulho Enos Neto.

Após seu falecimento, foram muitas as notas de pesar, publicadas por diversas entidades do estado do Maranhão, e as notícias publicadas em jornais da região exaltando sua dedicação e o modo exemplar, alegre e extrovertido como atuava nas atividades educacionais. Nos comentários das postagens, muitos estudantes faziam questão de expressar sua gratidão por terem convivido com o Sargento Enos.

Cabe ressaltar ainda que Enos estava prestes a ser promovido à patente de subtenente. Lamentavelmente isso não ocorreu, pois, com a chegada da pandemia de Covid-19, não foi possível realizar os protocolos da promoção.

Ainda no tocante ao tempo da pandemia, voltemos ao universo pessoal. Enos era diabético e esse fato proporcionou um momento de muita amorosidade. Preocupada com a saúde do marido e sabendo que diabetes era um fator de risco, Marcilene cuidou rigorosamente da dieta dele para manter a glicose sob controle. Ela e Enos, o único filho que ainda morava com eles, também entraram na dieta, em solidariedade. Sorrindo, Enos Neto relembra que a paixão do pai por pães o fazia quebrar a dieta às escondidas. O predileto dele era um tipo de pão doce que no Piauí tem o nome de “massa fina”.

Enos, o piauiense que teve o Maranhão como lugar de reconhecimento, segue vivo nas demonstrações de todo o carinho de Enos Neto pelo pai e no desejo dele de “seguir honrando o nome do pai e ser ao menos metade do que ele foi e botar em prática tudo o que ele me ensinou”. Vive também no seu “silêncio que segue fazendo barulho” no coração do filho e ecoa nos versos emocionados e emocionantes que virão a seguir.

“Sinto falta
Sinto falta de quando me chamava para tomar café cedo
ignorando meus planos de dormir até tarde;
Sinto falta de quando me chamava pra arrumar alguma coisa junto;
Sinto falta de ‘preparar o terraço para o churrasco’;
Sinto falta de lhe ‘apanhar’, quando seu carro dava problema;
Sinto falta de sua mão pequena, mas cheia de força, em meu ombro ao me dar conselhos;
Sinto falta de lhe massagear depois de um dia de trabalho exaustivo;
Sinto falta de seu cheiro invadindo cada cômodo da casa ao amanhecer;
Sinto falta de ver você usando minhas roupas mais extravagantes;
Sinto falta de suas mensagens e ligações inesperadas, mas cheias de urgência
Para contar uma novidade;
Sinto falta de suas histórias e piadas;
Sinto falta de seus discursos intermináveis nas festas de família;
Sinto falta de seu abraço apertado ao chegar de viagem ou de um dia de trabalho;
Sinto falta de fazer aquele cafuné na sua cabeça;
Sinto falta dos flashbacks no volume máximo;
Sinto falta das maratonas de filmes de ação, mesmo o senhor gostando de filme indiano kkk;
Sinto falta das brincadeiras (e do índio apaixonado);
Sinto falta da sua genialidade e criatividade;
Sinto falta de sua presença na cabeceira da mesa (cadeira do rei);
Sinto falta de chegar e correr pra rede pra lhe abraçar
Sinto falta de sua Voz;
Sinto falta de sua chegada;
Sinto falta de você, pai.”

Enos nasceu em Teresina (PI) e faleceu em Teresina (PI), aos 49 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pelo filho de Enos, Enos Soares da Silva Neto. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Ernesto Marques, revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Ana Macarini em 4 de agosto de 2023.