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Ester Albuquerque de Lima

1943 - 2020

Do terraço de sua casa, no alto da escadaria, Teté via o tempo e as pessoas passarem.

A disposição para compartilhar e o jeito amoroso de se relacionar com as pessoas eram nítidas em Teté, como Ester gostava de ser chamada, desde muito cedo, contrastando com as suas experiências da infância e da mocidade.

Vivendo do roçado, em Paudalho (PE), a infância de Ester foi marcada por muitas batalhas para sobreviver a cada dia. Não havia muito tempo para brincadeiras de criança ou sonhos para o futuro quando a maior preocupação era garantir a comida da próxima refeição. Quando não estava na roça, estava na beira do Rio Paudalho, ao lado de outras meninas e mulheres, lavando roupas.

Já mais moça, perdeu o pai e foi trabalhar como costureira em Recife (PE), tendo que se sustentar sozinha ao mesmo tempo que dividia seu salário com a mãe, os irmãos e os sobrinhos. Quando se casou, continuou vivendo dias de batalha. Com um marido muito rígido, que não gostava que ela trabalhasse fora, nem recebesse muitas amigas em casa, Teté precisou encontrar maneiras de não deixar suas cores esmaecerem.

A chegada dos filhos Eliane e Valmir, a conversão à religião evangélica e as boas amizades verdadeiras com Dona Julieta e Dona Sebastiana foram deixando ainda mais nítidas os contornos da vida de Ester, essa mulher de coração tão nobre.

A filha lembra que Teté sempre contava a história de que queria muito ter uma filha menina. "Minha mãe dizia que, no dia em que eu nasci, ela teve uma emoção muito grande. Ao receber a notícia que havia dado à luz a uma menina, bateu-lhe um tremor e uma dor de cabeça que quase morreu", conta rindo a primogênita Eliane. Teté pensava que tendo uma filha teria uma companheira para a vida toda até a velhice. E estava certa. Elas estiveram juntas em todos os momentos – das tardes de domingo com "bolo de mãe" quentinho saindo do forno aos dias difíceis no hospital, quando, nos últimos anos, Teté passou a ter complicações na saúde. "Mesmo ela querendo muito uma menina, eu preciso te contar que quando o Valmir chegou, ele se tornou o xodó dela", completa Eliane.

Para Teté, os filhos nunca cresceram. Com seu jeito de "mãezona", como diz Eliane, ela os queria sempre por perto e se agradava em dividir tudo com eles. Teté sempre ficava no terraço de casa à espera do carro do filho apontar, no horário que ele voltava do trabalho para casa. "Antes de ir se reunir com os filhos dele, que, aliás, eram a paixão de minha mãe, e com Mônica, a minha cunhada e quem minha mãe tinha como uma filha, ele passava todo dia para dar um oi para a nossa mãe. Ela, por sua vez, dividia a comida que tinha preparado para o jantar com meu irmão Valmir para que levasse para comer junto com a esposa e as crianças dele, especialmente se fosse macaxeira".

Gostava de ficar no terraço de sua casa, no tempo livre. Quando descia para dentro de casa, era para ver seus programas evangélicos na televisão ou o Mais Você, da Ana Maria Braga. "Toda vez que via uma receita diferente na TV, ela pedia para eu buscar na internet para testarmos juntas", lembra Eliane.

Mesmo gostando de testar receita nova, o seu prato mais famoso, aquele que mais fazia sucesso entre a família, era uma receita bem antiga: o feijãozinho de todo dia. “Os ingredientes eram os comuns de todo feijão, mas, de alguma forma, o dela era especial. Eu mesma não consigo fazer igual até hoje”, diz Eliane.

Já quem gostava mesmo de provar as receitas diferentes de Teté era a Dona Julieta, amiga da igreja e amiga da vida. Teté e D. Julieta eram vizinhas na escadaria, com D. Julieta morando umas casas mais para baixo da casa de Teté. "Tudo que mamãe fazia ou comprava diferente, seja um bolo, uma fruta, uma mistura qualquer, ela dividia com essa amiga. Elas faziam essa troca por uma corda, com uma vasilha amarrada na ponta, que chamavam de cacimba, para subir e descer as trocas de comidas. D. Julieta também faleceu, de morte natural, dois meses depois que mamãe se foi".

Completava esse trio a amiga Dona Sebastiana, com quem Teté passava horas conversando ao telefone. Juntas, as três amigas iam aos cultos de domingo e faziam parte do projeto Proati, um grupo de idosos da igreja evangélica da qual faziam parte.

Amizade boa tinha também Teté com sua cuidadora Fernanda. A relação de afeto e confiança entre as duas fez com que Fernanda se tornasse muito próxima da família. Teté chegou a pedir que Fernanda prometesse que continuaria cuidando de seu esposo enquanto ele precisasse, mesmo após sua partida. E assim segue sendo.

Teté sabia que a vida que tinha e que podia compartilhar com as pessoas que a cercavam era uma vida de abundância – igual ao seu jardim, espalhando perfume e cores. Teté se multiplicou por onde passou, generosamente.

Ester nasceu Paudalho (PE) e faleceu Recife (PE), aos 81 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido Filha de Ester, Eliane Albuquerque de Lima. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Michele Bravos, revisado por W. Barros Dantas Paniagua e moderado por Rayane Urani em 25 de agosto de 2021.