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Eunice Silvestre

1948 - 2020

Sabiamente dizia que precisamos de muito pouco para viver, quem sabe um pouco de verde para olhar e só.

Dona Nice. Assim era chamada essa mulher alegre, simples, batalhadora e otimista.

Ao ficar viúva, assumiu toda a responsabilidade pela casa. Sempre positiva e muito guerreira, nunca reclamou dessa condição que a vida lhe apresentou. Trabalhava com entregas – era a única mulher, na época, a exercer esse ofício – e saía bem cedinho para distribuir os calçados nas lojas.

Sua bondade e humanidade eram um norte para quem com ela convivia. Com enorme senso de justiça, foi sempre uma referência: representava tudo aquilo que a gente quer ser quando crescer.

Era sonhadora e muito consciente ao mesmo tempo. Apreciadora das flores e dos pássaros, sabiamente dizia que nessa vida a gente precisa de muito pouco para viver.

Não negava ajuda a quem pedisse. “Cresci vendo minha tia atendendo quem batesse à sua porta”, conta a sobrinha Priscila. E continua: “Tia Nice dava comida no prato em que comia, cedia o talher que ela própria usava, apenas pedia para a pessoa deixar tudo na calçada quando terminasse a refeição”.

Admirada e muito respeitada por todos e todas, Dona Nice exercia a autoridade na medida exata: sabia o modo e a hora certa de se colocar nas situações da vida. Com sua sabedoria, dizia: “Não adianta nada falar o que se pensa, sem escolher o modo certo de dizer; agir assim não ajuda em nada, é só um desabafo!”

Sua presença transmitia paz: “Se falar o que penso não vai ajudar, então prefiro ficar quieta, porque discussões desnecessárias me tiram a paz e só pioram a situação em lugar de resolvê-la”.

Amava caminhar nas ruas do bairro e visitar o comércio local. Era imbatível quando o assunto era fazer pesquisa nos mercados: conhecia, como ninguém, as marcas oferecidas e os preços praticados em cada estabelecimento. Saía para comparar os preços e nunca voltava para casa de mãos vazias. “Ainda posso escutar o barulho do portão se abrindo e ver a minha tia entrando, segurando toda feliz uma sacolinha com a oferta daquele dia”, lembra com saudades a sobrinha Priscila.

Uma das manias da Dona Nice era dormir no sofá da sala. Tinha o próprio quarto, com a cama dela, tudo bem arrumadinho. Mas ela gostava mesmo era de dormir no sofá e ninguém a convencia de que teria mais conforto indo descansar no quarto.

Muito presente, doou sua vida aos que amava: cuidou com muito amor da mãe Georgina, do marido, dos três filhos, dos sobrinhos, sete netos e quatro bisnetos!

Priscila conta que, quando era pequena, ia com a tia Nice para Piedade, na chácara da avó. Quando chegavam lá, a tia fazia questão de passar de casa em casa, cumprimentando os vizinhos. Ela se lembra das botas de galocha, do cansaço da caminhada – era muito criança – dos escorregões na terra lisa e da tia Nice roçando as áreas tomadas pelo mato. Voltavam pra casa com as roupas cheias de picão e carrapicho.

Cozinheira de mão-cheia, reunia a família inteira em torno da mesa para saborear as deliciosas pizzas que fazia, as saborosas coxinhas e o melhor bolo de coco gelado de todo o universo! Para a sobrinha Priscila, o bolo gelado da Dona Nice era o melhor de todos que ela já experimentou. Lembrará com carinho que, no aniversário de 2019, esse foi o seu presente, feito com todo amor pela tia.

Em fevereiro de 2020, Dona Nice reuniu toda a família como sempre amou fazer. Para esse encontro decidiu fazer os três pratos preferidos da família, tudo de uma só vez: pizza, coxinha e bolo gelado de coco. Nesse dia, uma de suas netas falou: “Eita vó, essa reunião com toda a família e todas as nossas comidas favoritas de uma só vez, tá até parecendo uma despedida!”

A sobrinha Priscila conta que naquela hora até sentiu um arrepio; mas, preferiu guardar para si aquela sensação. No fundo, foi um presente aquele encontro, a família toda ali, desfrutando da companhia de Eunice, feliz e com saúde.

Os que ficaram vão aprendendo aos poucos a lidar com a saudade. O que ajuda muito mesmo são as boas lembranças dessa mulher guerreira que tão bem soube lidar com os altos e baixos da existência e fez a diferença na vida de todos e todas que com ela conviveram.

Hoje Eunice descansa em um lugar de muita paz, cercada pela natureza que tanto amava, foi o jeitinho que sua filha encontrou para realizar o sonho de Dona Nice: ter uma pequena chácara com muitas plantas e passarinhos.

Eunice nasceu em São Paulo (SP) e faleceu em Barueri (SP), aos 73 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pela sobrinha de Eunice, Priscila Cristini dos Santos. Este tributo foi apurado por Lígia Franzin, editado por Claudia Saviolo, revisado por Lígia Franzin e moderado por Rayane Urani em 24 de dezembro de 2020.