1981 - 2020
Neste universo em multiversos, a bondade reluzia no castanho de seus olhos e a alegria no riso fácil e sincero.
Este é o tributo que Eric escreveu para seu irmão gêmeo, Felipe:
Brasileiro. Paulista. Paulistano. Pisciano. São-Paulino. Engenheiro.
Ostentando sempre a cor castanha tanto em seus olhos como em seus cabelos, cultivando ainda uma vultosa e vistosa barba, tão logo lhe foi possível quando esta começou a crescer e aparecer em seu rosto, e desde então, sempre presente a adornar seu rosto quando desejado por si, cuidando dela sempre com muita atenção e afinco.
Afinco e atenção sempre ali, existindo em tudo o que despertou e ensejou a sua dedicação.
Felipe Marques, nascido em 25 de fevereiro do ano de 1981. Uma quarta-feira à tarde, na selva pauliceia de pedra.
Naquele momento, Edite, a mãe, já se encontrava, há algumas horas, em trabalho de parto. Um evento que, decididamente, não seria tão simples de se concretizar.
No ventre, aguardavam não só uma, mas duas vidas para se iniciar.
Da concepção até o momento do nascimento, o útero de Edite era habitado por dois bebês, irmãos gêmeos, fato inédito na família da mãe e também na família do pai, José Antônio. "Um milagre!", pode-se, por assim dizer, ser denominada essa gestação.
José Antônio e Edite são casados desde 16 de outubro de 1976 e já estavam juntos durante os demais anos de namoro que antecederam sua união. Algum tempo depois do casamento, uma gravidez foi espontânea e inesperadamente interrompida. Tristeza para o jovem casal, que precisou aguardar até 25 de fevereiro de 1981 para, enfim, tornarem-se pais.
Tivesse vingado essa gestação, os dois bebês, gêmeos, fatalmente não viriam ao mundo. A segunda gravidez, de onde surgiu enfim Felipe, era considerada de risco. Por essa razão, Edite, a mãe, não soube que carregava duas vidas dentro de sua barriga até poucos dias antes do nascimento, certa preocupação e ansiedade advinda desse fato poderia prejudicar sua própria saúde, e também a saúde dos seus filhos que ainda estavam por vir.
Um breve pulo no futuro: Edite contou tal história aos gêmeos anos depois, quando ainda não haviam ultrapassado a barreira da infância. O gêmeo de Felipe - ao ouvir o relato de Edite, a mãe - caiu em lágrimas, em uma mistura de remorso, sentimento de perda e de alívio. Ao mesmo tempo, soube que perdera um irmão mais velho. Um alívio ao constatar que, se esse irmão tivesse nascido, os gêmeos não existiriam e um remorso de perceber tal alívio, sentindo culpa por seu irmão que não teve a oportunidade de ver a luz do dia, e que só assim ele e o seu irmão Felipe puderam existir.
A bordo da máquina do tempo, voltamos a 1981, quarta-feira, dia 25 de fevereiro, mesmo dia e mês em que George Harrison, que dispensa apresentações, havia nascido. Tarde de verão em São Paulo. O trabalho de parto já se estendia por horas. Mas finalmente, às 16h25, irrompeu a vida, com certa dificuldade, utilizando-se de fórceps para vir à tona.
Felipe esteve acompanhado no ventre de sua mãe Edite desde que foi concebido. Seu gêmeo irmão já havia partido dali, desbravando o caminho que daria o início à vida. Mas Felipe não permaneceu ali sozinho por muito tempo. Ao contrário.
Às 16h28, apenas três minutos depois, pois não havia tempo a perder, Felipe já atravessava a rota recentemente desvendada e aberta pelo irmão, com pressa de iniciar sua trajetória neste planeta. E já nasceu grandioso!
Os gêmeos nasceram grandes e fortes, apesar da gestação não ter completado nove meses, o que é até comum em se tratando de gêmeos. Por outro lado, a gravidez de Edite já tinha oito meses completos quando Felipe nasceu. Não demorou muito para que a nova família, recém-constituída, pudesse ir para casa.
Nas primeiras semanas, as pulseirinhas de identificação não foram retiradas dos bebês recém-chegados. Aos pais de primeira viagem, Edite e José Antônio, foi necessário um tempo para conviver com as então pequeninas crianças, para aprender as (poucas) diferenças físicas existentes entre os irmãos. Ora, estamos falando de gêmeos idênticos. Em pouco tempo, no entanto, Edite e José Antônio aprenderam a distinguir um do outro, para nunca confundi-los, nem mesmo uma vez, ainda que usassem roupas iguais dadas pelos familiares e amigos próximos do casal.
Estes pais ainda então iniciantes, sempre tiveram em mente que, inobstante os irmãos serem gêmeos idênticos, tratavam-se de dois indivíduos únicos, distintos. Uma postura sábia, materializada não só na compra de roupas diferentes para cada um, mas principalmente na escolha dos nomes dos filhos.
Tais nomes foram escolhidos a dedo. Não queriam nomes parecidos, que começassem com a mesma letra, como Renato e Ricardo, por exemplo. Ou Pedro e Paulo. Ou Guilherme e Gustavo. Não.
Felipe e Eric foram os nomes prediletos. Ao primogênito (pela lei dos homens), foi dado o nome de Eric. Ao mais novo (que pela ciência é na verdade o mais velho, eis que foi gerado primeiro), foi dado o nome de Felipe. Vejam só. Nomes diferentes, mas ao mesmo tempo soam tão parecidos. Na poesia da vida compartilhada entre os irmãos, Felipe e Eric, tais nomes rimam em verso e prosa.
E então, Felipe nasceu. E cresceu. E aprendeu. Aprendeu a engatinhar. Aprendeu a falar. Aprendeu a andar. Aprendeu a correr. Aprendeu a usar o troninho. Aprendeu a ler. Aprendeu a escrever. Aprendeu a desenhar. Aprendeu a amarrar os cordões dos próprios sapatos. Aprendeu a andar de bicicleta. Aprendeu a jogar bola. A jogar basquete. A pular corda. A jogar futebol de botão. A brincar de autorama. Aprendeu a jogar videogame. Aprendeu a falar inglês. A usar um computador. Aprendeu a tocar bateria. Aprendeu a dirigir. Aprendeu uma profissão. Aprendeu a cozinhar.
Amar? Já nasceu sabendo… Mesmo assim, não deixou de buscar aprimorar e aprender mais sobre o amor… Só não aprendeu a voar por conta própria porque não lhe deram asas como as de um pássaro.
E amadureceu. Amadureceu com o longo caminho do crescimento. Com a passagem do tempo. Com as primeiras, segundas e terceiras experiências, às vezes agradáveis, às vezes repugnantes.
Os primeiros passos. As primeiras palavras. As primeiras brincadeiras. O primeiro dia de aula. Os primeiros amigos. O primeiro beijo. O primeiro amor. A primeira transa. O primeiro fora. O primeiro término. A primeira desilusão. O primeiro grande amor. O primeiro emprego. O primeiro carro. O primeiro porre. O primeiro dia de aula na faculdade. O primeiro dia depois de formado. A primeira grande viagem internacional. O primeiro noivado, e algum tempo depois, o segundo noivado. A segunda desilusão. Alguns namoros, novas velhas desilusões… O primeiro animal de estimação. O primeiro dia dormindo debaixo de um teto que não fosse aquele em que vivera com a família na qual nasceu, e sim com a família que acabara de formar. A primeira companheira. O segundo e terceiro animal de estimação. A primeira grande mudança de endereço de sua vida. O primeiro dia residindo em Resende, que lamentavelmente, viria a se tornar o local de sua última morada.
Felipe viveu. Chegou com pressa. Queria logo atingir seus objetivos, satisfazer seus desejos, atender às suas necessidades. Nem sempre suas metas o encontraram com tanta rapidez. Nada podia esperar. Enfrentou caminhos árduos muitas vezes. Venceu e perdeu tantas batalhas da vida. Quis ser feliz desde o primeiro segundo em que respirou a vida para dentro de seus pulmões. Buscou isso ao longo de anos de sua vida, muitas vezes, com a típica urgência da juventude. Encarou diversos fantasmas em sua trajetória, os mesmos que atrasavam seu lado. Aprendeu a lutar contra eles. Aprendeu a vencê-los. De repente, mesmo com demora, aquilo que Felipe mais queria em sua vida tornou-se realidade. Os fantasmas pareciam ter sumido. A pressa, agora, parecia ser inútil, não mais utilizada.
Felipe deixou sua história para ser contada por aqueles que o acompanharam em sua vida. Deixou seu pai, sua mãe, seu irmão gêmeo, a família em que foi recebido quando nasceu em 25 de fevereiro de 1981, a família que há pouco havia constituído com sua companheira e seu enteado. Deixou seus filhos “pets”: três gatos e um cachorro, que já era tutelado pelo seu irmão. Deixou amigos. Deixou histórias. Muitas delas engraçadas, outras tristes, grandes momentos de glória e redenção, de superação, de desafios superados. Deixa saudades, e muitas…
Felipe é. Não deixa de ser, nem mesmo agora, nem nunca antes, nem depois, mesmo quando seu espírito deixou para trás seu corpo para ser, enfim, verdadeiramente livre.
Felipe é amor. Para seu irmão, que escreve este relato sobre você, Felipe é o grande amor da vida de Eric.
Felipe é amor para seus pais. Sua família. Seus amigos. É o amor bom, transformador. É o amor que zela. O amor que cuida. O amor que liberta, que traz a redenção, que muda a vida de quem o experimenta. É o amor puro, incondicional. É o amor romântico. É o amor paternal. Fraternal. É o amor expresso de forma inegável e inequívoca pela transparência com que seu rosto ilustra seus sentimentos.
Felipe é bondade. A bondade que brilha reluzente no castanho de seus olhos. Presente em suas ações. Em suas atitudes. Em seu coração. Em seu espírito. No cuidado com o próximo. Na preocupação com seus entes amados. Nas práticas adotadas para defendê-los, ainda que aqueles, por sua própria culpa e não de Felipe, não fossem capazes de entender as nobres intenções deste. É a bondade que torna o mundo um lugar melhor. Que traz harmonia entre os povos. Que pavimenta o caminho do amor, da alegria e da felicidade.
Felipe é justiça. A que equilibra a balança. Que é ponderada. Que defende o certo. Que preza pela sinceridade, pela honestidade. Que promove o bem. Que afasta o mal.
Felipe é beleza. A beleza presente no seu deslumbrante sorriso, o mais belo que já existiu neste universo em multiversos e, ainda assim, inigualável e intransponível. É a beleza do nascer do sol, do luar refletido no oceano, da aurora boreal, do final de tarde. Da paisagem avistada de longe. Do horizonte visto ao longo do alcance de seus olhos. Dos fenômenos naturais, dos mais sutis aos mais violentos. É a beleza dos momentos doces que tornam a vida especial. Que torna todos ao seu redor especiais.
Felipe é inspiração. Inspiração para fazer o bem, não importa a quem. A praticar o bem. A dar o melhor de si. A se superar. A fazer cada vez melhor. A ter coragem. A ter garra, sem medo de ser agressivo se assim preciso.
Felipe é alegria. A diversão presente nos encontros entusiasmados de amigos. O riso fácil, sincero, honesto, de quem é verdadeiramente feliz. De bem com a vida. É a gargalhada espalhafatosa dada após ver ou ouvir alguma piada engraçada, daquelas que fazem o seu rosto ficar vermelho e sua risada travada, quase impossível de cessar. É a satisfação de vê-lo rindo desse jeito e ter seu coração inundado de felicidade por isto. É a satisfação de saber que as risadas se repetirão mesmo com as mesmas piadas de sempre.
Felipe é honestidade. Franqueza. Sinceridade. É a coragem de fazer aquilo que acha certo. A coragem de defender seus interesses. De não baixar a cabeça. É a ojeriza à falsa bajulação para atingir um objetivo, para prejudicar terceiro ou para se autopreservar. É o caráter. A honradez. A autenticidade de falar o que pensa. Doa a quem doer. Mas sem desrespeitar.
Felipe é tudo aquilo que torna este mundo um lugar melhor para se viver. É o colorido especial do pôr do sol. É o que aviva as cores. É o som que agrada aos ouvidos. É a melodia que te faz querer dançar. É a vitória. A conquista. A consagração.
Felipe é, enfim, vida.
Felipe, meu irmão amado, sua história não acabou… Ela será contada por mim, seu eterno irmão gêmeo, que para sempre muito te amará, mais do que a própria vida, e que jamais te esquecerá. Sua vida continuará aqui, através de todos que aqui estamos, que tanto o amamos. Você será imortal.
Te amo.
Seu irmão, Eric.
Felipe nasceu em São Paulo (SP) e faleceu em Resende (RJ), aos 39 anos, vítima do novo coronavírus.
Testemunho enviado pelo irmão gêmeo de Felipe, Eric Marques. Este tributo foi apurado por Malu Marinho, editado por Mateus Teixeira, revisado por Acácia Montagnolli e moderado por Rayane Urani em 19 de abril de 2021.