1953 - 2020
Ele cultivava um grande amor pela família e transformou a vida num jardim de afetos.
Flavio era um homem de palavra. Uma palavra: família. Claro, ele falava sobre outras coisas. Tinha sempre muito assunto. Entendia de plantas, era cheio de amigos, admirado pelos colegas do trabalho, cliente requisitado nos restaurantes que frequentava.
Mas o coração pulsava mesmo era pela família, especialmente a formada por ele. Jovem, desafiou os pais para se casar com a mulher que amava – eles nem foram prestigiar o casamento do filho, na época. Se isso causou algum mal-estar? Nem um pouco. Flavio tinha boa memória, ou seja, nada de ruim ficava guardado.
E o tempo mostrou que, entre seus muitos talentos, estava a habilidade de se apaixonar pela pessoa certa. A lua de mel jamais terminou. Nem as responsabilidades do dia a dia, nem os netos correndo pela casa atrapalhavam o clima de romance, do amanhecer ao fim do dia.
Flavio só saía de casa depois de tomar o café da manhã preparado pela esposa. Podia ser um pãozinho recheado com fatias de queijo – se ela servisse, valia mais do que qualquer banquete. Após o almoço, o ritual era uma sonequinha, os dois estiravam-se na cama agarradinhos antes de ele sair para o segundo plantão. Finalmente, nas noites em casa, as mãos do casal não se desgrudavam enquanto assistiam à televisão.
Era médico, daqueles de ter a vocação reconhecida à distância. Durante a pandemia, com a escassez de recursos, investiu dinheiro próprio nos equipamentos necessários para conseguir atender. Contava satisfeito o episódio do bebê recém-nascido cuja vida conseguiu salvar ao ser procurado, no meio da noite, pelos pais da criança – eles estavam desesperados, o filho havia se engasgado mamando.
“Jurei praticar a medicina honestamente”, repetia sempre. E tinha uma conduta ética invejável. Doente, relutou em buscar ajuda porque não queria ocupar o lugar de outro paciente. E, mesmo quando deixava o jaleco de lado, o perfil de cuidador continuava se destacando.
Cultivava plantas de vários tipos. Era entusiasmado pela jardinagem, flores em especial. Qualquer muda indefesa desabrochava nas mãos dele, até parecia mágica. Tinha uma casa de praia na ilha de Mosqueiro, onde gostava de passar os finais de semana livres – e o jardim dessa casa impressiona pela diversidade e pela beleza. Flavio fazia questão de cuidar de tudo.
Verdade, entretanto, que nem sempre a vida foi de abundância. Na época da residência acadêmica no Rio de Janeiro, com dinheiro contado e amor de sobra, a diversão ficava por conta da ida de bicicleta para a praia – os trocados não rendiam nem para a passagem. Frango com farofa, preparado em casa, e o vinho comprado no supermercado completavam os piqueniques que ficaram nas recordações do casal.
As memórias eram revividas com frequência nos momentos de descontração em casa. Fazia graça ao provocar ciúmes no neto José Manuel, a quem punha na rede para contar histórias antes de dormir: os dois disputando quem seria o favorito da matriarca, o neto ou o marido?
Essa pergunta não tem resposta. Porque, graças à convivência com Flavio, a família inteira aprendeu que o amor é sentimento ilimitado e pode ser dividido à vontade. E, tal qual a mágica ocorrida com as plantas, vai crescer e se multiplicar, contribuindo para transformar a vida num jardim de afetos.
Flavio nasceu Belém (PA) e faleceu Belém (PA), aos 66 anos, vítima do novo coronavírus.
Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela filha de Flavio, Natália Bentes Lima. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Juliana Parente, revisado por Otacílio Nunes e moderado por Rayane Urani em 19 de setembro de 2020.