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Florindo Shigueji Narimoto

1959 - 2021

Com seu jeito solícito e extremamente cuidadoso, foi considerado, por muitos, o taxista mais gentil de Piracicaba.

Não havia quem conhecesse Florindo e não se admirasse profundamente pela nobreza demonstrada a cada gesto. Com retidão em suas palavras e atitudes, mantinha uma postura impecável, buscando ser exemplo e orgulhando-se em sempre fazer o certo.

Filho de japoneses que imigraram ainda crianças para o Brasil, Florindo aprendeu logo cedo o valor do trabalho e a honradez aos compromissos. Quando jovem, ao lado dos irmãos, auxiliava o pai na zona rural e, posteriormente, no bar, principal fonte de renda da família depois que se mudaram para a cidade.

No começo da vida adulta, tornou-se taxista. Nessa época, enamorou-se por Maria Dione, que trabalhava na padaria em frente ao seu ponto de táxi. Por meses, Florindo tentou incansavelmente conquistá-la, até o tão sonhado aceite de namoro. De lá para cá, a vida deles se entrelaçou dia após dia.

Durante felizes trinta e seis anos, o casal construiu uma relação em que predominavam o companheirismo e a compreensão. Não eram muito de palavras ou de declarações românticas, preferiam demonstrar todo o amor que sentiam um pelo outro através de gestos cotidianos: era comum que Maria surpreendesse o marido com suas comidas favoritas. Ele, por sua vez, procurava agradá-la com presentes e mimos. Os dois possuíam uma simbiose fora do comum, em que se compreendiam apenas por uma troca de olhar.

Do amor entre o casal, veio Lidiane, a quem Florindo chamava carinhosamente de Pide. Pai presente, fazia questão de se dedicar aos cuidados com a filha: era o seu grande parceiro nas brincadeiras e sempre deixava que ela fizesse penteados em seu cabelo, para a alegria da menina. "Entre as minhas recordações favoritas quando pequena, está o pedido dele para eu ficar com os cotovelos dobrados bem forte para me erguer segurando-os. Ele me perguntava 'vamos fazer durinho?' Logo depois, me levantava bem no alto, até que fui crescendo e chegou um ponto em que ele não conseguia me levantar mais", recorda Lidiane.

Apoiador incondicional da filha, incentivava todos os sonhos dela. Quando Lidiane quis fazer aulas de teclado, o pai logo a presenteou com o instrumento musical: "Nos momentos em que eu treinava no quarto, meu pai entrava, sentava-se e apreciava o som ecoando pelo ambiente. Ele sempre me elogiava, ainda que eu errasse alguma nota musical. Por fim, me pedia para tocar a canção 'I just called to say I love you', do Steve Wonder".

A filha ainda complementa: "É clichê, mas o meu pai era o melhor! Extremamente atencioso e preocupado, fez o que pôde para eu realizar todos os meus desejos. Quando eu dizia gostar de alguma guloseima, cada vez que ele ia ao mercado, comprava essa iguaria até que eu enjoasse".

Decidido a proporcionar mais conforto à família, morou por três anos no Japão. Lá, teve sua primeira oportunidade na construção civil, depois foi trabalhar como montador em uma indústria automotiva. A experiência fez com que ele aprendesse ainda mais sobre carros. "Meu pai entendia bastante de veículos, tanto que apenas com um olhar identificava se o carro tinha sido batido ou trocado alguma peça", diz Lidiane.

Apesar da saudade sufocante, trabalhou arduamente pelo propósito de juntar dinheiro e conquistar a tão sonhada casa própria. Lidiane lembra: "Enquanto o meu pai estava no Japão, minha mãe e eu moramos em uma edícula, nos fundos da casa da minha avó. Para compensar a saudade, ele nos enviava muitas cartas e, todos os domingos, falava com minha mãe ao telefone. Quando voltou, comprou a nossa primeira casa, onde vivemos por dezoito anos. Dizia todo orgulhoso que havia comprado seu lar sem ajuda de ninguém, somente com o suor de seu trabalho".

As experiências em terras nipônicas foram de grande valor em sua vida. Florindo amava o Japão e, volta e meia, era possível ouvi-lo empolgado contando como o país era evoluído, "de primeiro mundo", como ele dizia. Explicava costumes e curiosidades, ensinava regras de etiqueta, além de narrar inúmeras histórias de pessoas que conheceu por lá. Tanto apreço fez, inclusive, com que ele cogitasse levar toda a família para o Japão. "Por um bom tempo, meu pai teve o intuito de voltar ao Brasil para realizar o curso de soldador e, posteriormente, retornar ao Japão para ganhar mais dinheiro. Ele queria que nos mudássemos de vez, mas minha mãe nunca quis, e sozinho ele não foi mais. No fim, acabou arranjando um trabalho como soldador e se estabelecendo por aqui", afirma Lidiane.

Durante quinze anos, exerceu orgulhosamente o ofício de soldador. Dizia sempre que a solda feita por ele, nenhum outro fazia igual. Quando novos funcionários chegavam, Florindo ficava muito feliz pela oportunidade de ensiná-los a função.

Prestes a se aposentar, tornou-se novamente taxista. Com o seu jeito solícito e sempre cortês, logo conquistava a confiança dos seus clientes, sobretudo dos mais idosos, com quem tinha extremo cuidado. Para muitos, foi o taxista mais gentil de Piracicaba.

O comprometimento com o trabalho sempre foi motivo de orgulho para a filha: "Meu pai teve diversas profissões, exercendo-as com extrema dedicação, pontualidade e qualidade. Além de comerciante, taxista e soldador, foi, também, motorista de ônibus e caminhoneiro. Constantemente nos contava histórias de quando viajava em seu caminhão pelo Brasil. Muitas vezes, chegava exausto do trabalho, mas nunca esmorecia por ter o compromisso pessoal de nos ofertar o melhor".

Como compensação por passar boa parte do tempo fora de casa, reunia-se constantemente com a esposa e a filha para uma noite de filmes. "Desde pequena, assistimos todos os filmes de ação que se possa imaginar, sempre juntos. Minha mãe cochilava boa parte do tempo, mas ele e eu ficávamos atentos a cada cena", conta Lidiane. Florindo também auxiliava a esposa nos afazeres domésticos: lavava louças, varria a casa, passava roupas — embora não fosse sua maior habilidade — e realizava pequenos reparos em algum dos seus uniformes. Além disso, toda a semana, limpava o carro. Tinha plena satisfação em ver tudo limpo e organizado.

Nas horas livres, estava sempre com o celular em mãos para enviar inúmeros memes no grupo da família. Era comum, também, em meio a uma corrida e outra, ele ler a Bíblia e o livro do Graham Norton. Aos finais de semana, gostava de saborear uma cervejinha bem gelada acompanhada de costelas assadas e de torresmos à pururuca, como tira-gosto. "Todas as vezes que ele bebia, ficava alegre e começava a cantarolar um trecho da música 'A noite do nosso amor', de Roberto e Meirinho. O jeito desafinado que entoava a canção era muito divertido", relata Lidiane.

Fiel torcedor do Corinthians, durante as partidas, ficava sempre em frente à televisão. Na tentativa de que os seus gestos pudessem auxiliar na vitória do Timão, passava o jogo inteiro dando chutes no ar. Por noventa minutos, era o "camisa doze do time". O amor pelo Alvinegro Paulistano foi repassado à filha: "A minha camisa do Corinthians foi um presente do meu pai. Entre os meus sonhos não realizados ao lado dele estava assistirmos juntos aos jogos no estádio", diz Lidiane.

Apesar de seu pouco apreço pela prática de esportes e de atividades físicas, amava baralho. Nos encontros familiares, tornou-se tradição que todos se reunissem para jogos de truco e de tranca, enquanto saboreavam um delicioso churrasco. Quando alguém não sabia jogar, Florindo voluntariava-se para explicar pacientemente o passo a passo de todas as estratégias.

"Meu pai foi o melhor jogador de truco que já conheci! Foi com ele, inclusive, que aprendi a jogar. Durante as partidas, nunca consegui acompanhar o seu raciocínio ligeiro. De tão bom jogador conquistou ao lado do seu melhor amigo, inúmeros campeonatos de truco da empresa em que trabalhavam. Volta e meia, eu me lembro de quando ele chegava sorridente com o troféu em mãos, todo orgulhoso por seu feito", conta a filha.

Dotado também de grande sensibilidade, tinha um carinho todo especial pelos animais, preocupando-se, especialmente, com os cãezinhos de rua. Lidiane conta que o pai amava os bichos: "Certa vez, ao visitar um parque de aves, ele tirou uma foto fazendo cafuné em um tucano. Esse retrato tornou-se uma das minhas recordações favoritas".

Com um sentimento tão genuíno pelos animais, o coração de Florindo foi arrebatado por Babi, a cadelinha de estimação da família, a quem cuidava como se fosse sua filha caçula. Em casa, nunca faltavam cenouras e peras, os petiscos favoritos dela. Além disso, Florindo preocupava-se com a higienização das patinhas a cada passeio, com a limpeza dos bigodes depois que Babi bebia água e, caso a cachorrinha não quisesse comer, ele colocava pacientemente comida em sua boca. Nas viagens em família, fazia questão de ir somente a lugares que permitissem a entrada de bichos de estimação.

"Babi era o xodó do meu pai. A conexão entre os dois era tão intensa que se ele estivesse em casa, provavelmente, a cachorrinha estaria em seu colo ou no sofá ao lado dele. Depois que meu pai partiu, uma das cenas mais difíceis foi vê-la procurando por ele em seu quarto", revela Lidiane.

Em vida, Florindo realizou alguns sonhos, como a compra da casa própria e a formatura da filha. "Meu pai sempre me dizia que a única coisa que diferencia uma pessoa da outra é o conhecimento. Por isso, sempre me esforcei para buscá-lo. Embora ele não tenha feito faculdade, sempre me incentivou a estudar, a ser alguém na vida. Lembro de seus olhos brilhando quando me graduei e do orgulho em dizer para todos que eu fiz doutorado na Austrália. Por toda a vida, levarei os valores de retidão que ele me ensinou para honrar a memória dele e para, onde quer que esteja, tenha muito orgulho de mim", afirma Lidiane.

Com a proximidade da aposentadoria, que infelizmente não chegou a tempo, tinha planos de realizar um cruzeiro, embora a esposa tivesse medo de água e de viajar de motohome com a irmã e o cunhado. Lidiane conta que: "todas as vezes que nos reuníamos para um de nossos churrascos aos finais de semana, meu pai e meus tios saíam com muitos planos. Os três sonhavam em comprar um motohome para viajar por todo o Brasil. Eles discutiam como seria o veículo, o que teria dentro, quanto custaria e até em adequá-lo para que a Babi fosse junto. Depois que minha tia Júlia e ele faleceram, encontrei no celular do meu pai uma última mensagem que os dois trocaram quando estavam internados. Na conversa, ela dizia que os dois logo melhorariam, teriam alta e estariam viajando por aí".

Por toda a vida, Florindo, não importando as circunstâncias, se fazia presente. E assim permanentemente será... Ele marcará presença todas as vezes que seus familiares se reunirem para partidas de truco; enquanto o Whisky Chivas, seu preferido, vier imediatamente à mente durante as idas ao mercado de sua família; a cada vitória do Corinthians e a cada novo filme de ação for lançado, imaginando suas reações atônitas a cada cena. Ele será rememorado através de suas fotografias em que estava sempre sorridente, demonstrando com os olhos, a alegria de sua alma; e quando as inúmeras histórias que ele contava, vierem à tona, demonstrado o quanto sua vida foi um livro em que o leitor não consegue se desgrudar. Florindo será lembrado, porém, através do seu exemplo de homem honrado, que tinha nos seus valores, o seu guia de vida.

Quando alguém falava 'vá com Deus', ele sempre insistia que o correto era "Deus o acompanhe". Fica a certeza de que Deus o acompanha, no bom lugar que Florindo está.

Florindo nasceu em Araçatuba (SP) e faleceu em Piracicaba (SP), aos 61 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela filha de Florindo, Lidiane Regina Narimoto. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Andressa Vieira, revisado por Bettina Florenzano e moderado por Rayane Urani em 13 de maio de 2022.