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Francisco Irismar Moura

1967 - 2021

Vaidoso, gostava de usar um mocassim vermelho bordô, que para muita gente era charmoso por ser diferente.

Generosidade é a palavra que define o jeito de ser e o modo de vida que Irismar, nome pelo qual Francisco era conhecido, praticou. Em casa, na profissão e até mesmo com desconhecidos, ele era capaz de lançar mão do que a vida generosamente lhe concedera para ajudar e acolher.

Uma das possíveis causas de seu jeito generoso pode ter origem na infância. Nascido em uma família muito humilde, Irismar cresceu em um lugarejo chamado Suçuarana, no município de Independência, no Ceará. No sertão, durante boa parte da vida conviveu com uma paisagem árida, mato e cabeças de gado. Francisco e cada um dos onze irmãos tinham apenas um pequeno baú, menor que uma mala, considerada como bagagem de mão pelas companhias aéreas, para guardar suas coisas. Nele cabiam todos os pertences de cada um dos membros da família. Foi nesse ambiente, onde tudo era pouco, que eles aprenderam a compartilhar o que tinham.

Um exemplo concreto da alma generosa de Irismar foi o acontecido com uma irmã dele. Já idosa, Francinete esteve muito adoentada e não dispunha de recursos materiais e financeiros para cuidar da saúde. Quase sem pensar, Francisco propôs que ela passasse a morar na casa dele, juntamente com a esposa e os dois filhos, Andressa e Gabriel. O acolhimento proporcionado pela atitude amorosa dele foi fundamental para que Francinete tivesse mais conforto durante o tratamento.

Com a cadela da casa não era diferente. A bichinha tinha mania de pedir comida a Francisco enquanto ele fazia suas refeições. Era comum que ele pegasse parte de seu alimento e fosse oferecendo ao animalzinho de estimação.

De temperamento mais introvertido, precisava de um tempo para criar intimidade com as pessoas. Mas quando isso acontecia, deixava vir à tona o seu jeito brincalhão. Entre suas brincadeiras prediletas estava a de dar susto na esposa Norma e na sogra Osmarina. Quando conseguia realizar seu objetivo, dava boas gargalhadas, que vinham junto com os xingamentos e risadas das duas. No final, todos que estivessem próximos riam juntos.

Outro momento em que a gargalhada dele enchia a sala eram as cenas de filmes que assistia, muitas vezes acompanhado do filho Gabriel. Andressa explica que ele era, usando uma expressão regional do Ceará, “besta de rir”. Às vezes, numa cena em que a maioria até achava graça, mas ria pouco, ele “se acabava de tanto rir”, completa a filha, destacando que “a risada dele era a coisa mais gostosa de ouvir”. Eclético, ele assistia estilos de filmes bem diversificados e em quase todos encontrava razões para suas risadas.

Movido também pela generosidade, era protetor e “do jeito torto dele”, como diz Andressa, tinha um olhar muito atento. Se percebesse que algo poderia dar errado, logo alertava a pessoa envolvida. Dizia que já tinha passado por situação semelhante e que era melhor mudar de atitude, porque ele não queria ver alguém próximo passar pelos mesmos contratempos.

A sensibilidade do olhar de Irismar era tanta que ele percebia muito rapidamente mudanças de comportamento e do jeito de ser das pessoas. Captava no ar as aflições e necessidades daqueles com quem convivia e era mestre em perceber que algo não estava bem apenas pelo olhar. Assim que vislumbrava uma oportunidade, procurava saber o que se passava e, via de regra, colocava-se à disposição para dar um conselho ou ajudar de alguma maneira.

Vaidoso, Irismar gostava de estar sempre bem arrumado. Com enorme bom gosto e estilo diversificado, escolhia cuidadosamente as roupas na hora de se aprontar e usava perfumes regularmente. Gostava de peças na cor vermelha e marrom. Entre os adereços de seu guarda roupa, havia um par de mocassins vermelho bordô, que inevitavelmente chamava a atenção das pessoas.

Francisco era determinado e chegava a ser teimoso. Quando colocava algo na cabeça era difícil demovê-lo de suas convicções. A filha Andressa ressalta que em várias situações ele dava uma de São Tomé e pagava para ver, somente desacreditando de sua verdade diante dos acontecimentos reais.

Foi assim que ele conseguiu mudar-se do sertão para Fortaleza. Na capital cearense, constituiu família e realizou muitos sonhos. Um deles, o de ter uma empresa de prestação de serviços na área da construção civil que atuou na construção de casas para muita gente. Durante a pandemia o volume de trabalho diminuiu devido às recomendações sanitárias de distanciamento social. Mas, com a habitual responsabilidade, ele conseguiu passar pelo momento e honrar todos os compromissos.

Um outro fato está diretamente associado à empresa dele. À medida em que foi ganhando idade, o filho Gabriel passou a trabalhar junto com pai. No cotidiano da gestão da empresa e das obras, Francisco repassava a ele seus conhecimentos. As portas abertas pelo pai para Gabriel fizeram com que o filho escolhesse a engenharia civil como curso universitário. Fora do ambiente de trabalho, pai e filho também eram extremamente próximos.

Em casa, Irismar contou com a cumplicidade e parceria da esposa Norma durante 25 anos de relacionamento. Na linguagem do amor dele, toda vez que viajava trazia algum presente para ela e para os filhos. Um dos lugares preferidos do casal era a casa da Taíba, construída por ele na praia de mesmo nome. Frequentemente Francisco dizia que quando se aposentasse iria morar lá.

No que se refere aos sabores, Irismar apreciava a comida caseira e saborosa preparada por Norma. Entre os pratos preferidos estavam a galinhada, o baião de dois, uma comida típica do nordeste, e o arroz solto.

O último ato de generosidade e o princípio de um novo tipo de relação entre Irismar e Andressa aconteceu no hospital. Na sala de espera da casa de saúde, surgiram laços incríveis entre os que acompanhavam o tratamento de suas pessoas queridas. Andressa, que estuda Medicina, conta agradecida sobre o surgimento de uma bela amizade com a geriatra e paliativista Ana Cláudia Quintana Arantes, que somente tornou-se possível pela ação “invisível” do pai. A médica paulista acompanhava o tratamento de um amigo. E Francisco, por caminhos tortos, colocou a filha lado a lado com uma médica muito admirada por ela, devido à sua atuação na área dos cuidados paliativos. Irismar, não teve tempo de ver brotar, de forma inesperada e numa rapidez inacreditável, uma amizade fundamental para que as duas se apoiassem mutuamente em um momento tão desafiador.

Em um novo patamar de relação com o pai, Andressa sente que ele foi amparado por anjos e que agora está com ela em todos os lugares. Também, como efeito da generosidade de Irismar, a filha conta que sente-se ainda mais protegida e continua testemunhando as atuações “invisíveis” de um pai que continua vívido, presente em cada fração de segundo do dia. Comunicam-se por meio de ventos, de providências, de pressentimentos, por sinais da natureza, pelos objetos deixados pela casa. Os diálogos, antes no campo das palavras, passaram a acontecer diretamente de pensamento a pensamento.

Francisco segue vivo, na nova amizade de Andressa. Nos estudos de engenharia de Gabriel e na casa da Taíba, que espera visitantes para ver o mar.

Francisco nasceu em Independência (CE) e faleceu em Fortaleza (CE), aos 53 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela filha de Francisco, Andressa Sales Moura. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Ernesto Marques, revisado por Bettina Florenzano e moderado por Ana Macarini em 23 de fevereiro de 2022.