1937 - 2020
Deixou exemplos de honestidade e amor para a família.
Esta é uma mensagem de Tatyana e Thalyta, filhas de Francisco, para ele:
"Painho, descansa. Depois de tantas lutas travadas, algumas vencidas, como a luta contra a fome e a precisão que lhe assolaram como menino pobre do sertão nordestino dos anos 30.
Descansa, depois de, sendo aluno de escola rural, andar 14 quilômetros embaixo de sol e chuva com alpargatas ralhadas para estudar no grupo escolar Tristão de Barros em São Rafael, Rio Grande do Norte.
Descansa, após ser obrigado a comer um prato de coalhada encharcado de farinha quando menino. O olho gordo o fez pedir a mãe que colocasse mais farinha no prato para aumentar o volume do alimento e, quase vencido em meio às primeiras colheradas, a mãe lhe deu a lição capitular para sua vida: aqui nada se estraga. Naquele sertão de fome, desperdício não tinha vez.
Descansa, agora, dos mandados que fazia com orgulho e gratidão às primas mais abastadas que tanto o ajudaram a ser, como dizemos por aqui: a ser gente.
Descansa, depois de ver sua mãe vender a única cabra de leite para comprar suas duas mudas de roupa para estudar no internato da escola agrícola de Jundiaí.
Descansa, depois de ser aprovado num concurso nacional para ingresso no exército, onde viveria durante os anos duros do Brasil e poderia assumir o papel de arrimo de família.
Descansa, depois de sua luta diária com mainha em criar as filhas, fazer notas sem fim na cabeceira da mesa para estirar o salário até o final do mês. Cada dia, ambos sertanejos que conheceram a precisão, nos ensinavam o que a luz elétrica e o que chamamos de progresso apagaram. A figura rígida era a mesma que dividia os trabalhos domésticos e trocava nossas fraldas nas madrugadas sem fim das duas filhas mijonas.
Descansa, depois de tantos livros lidos e doados para espaços de leitura e biblioteca da sua terra de onde, de fato, nunca se desenraizou.
Descansa, após dedicar mais de vinte anos de vida escrevendo suas memórias sobre a Velha São Rafael e seus fatos pitorescos. Quase 400 páginas que são espécie de guardiãs da memória histórica e linguística de uma cidade sepultada nas águas.
Descansa, após encontrar um velho caderno de assentos de seu pai e dedicar a ele duas décadas de estudo e sistematização. Era um historiador diletante, um amante das artes do cotidiano do povo de sua terra.
Descansa, depois de tantos exemplos dados no silêncio.
Descansa, depois de ter sido filho, tio, marido, sogro e padrinho de muitos que apoiou a seu modo e nele viram o exemplo de tantas batalhas vencidas que, neste país de abismos, precisaram de mais três gerações para vencer.
Viveu as contradições de seu tempo. De seus tempos. Viveu os penhascos deste Brasil, entre a Amazônia indígena em que aprendeu o Tupi Guarani, ao sertão varrido pela secas; do Rio de Janeiro com o cabelo Elvis Presley aos Três Corações Mineiros; do Batalhão em Caicó à Raul de Alencar, ali no Alecrim, não sem antes salvar seu namoro ao som de Roberto Carlos numa vitrola.
Descansa, depois de seu gole de pinga dominical em casa, com tutano de mocotó.
Descansa também o tempo das dores do corpo e do cérebro delirante dos seus últimos oito anos.
Descansa, como um homem comum após sua árdua batalha, com a medalha de ter, em seus últimos momentos, vida e morte habitando seu corpo em plena harmonia. Sem dor. Em paz!
Vai, painho, aqui lhe agradecemos pelas batalhas que travou desde antes de nós e aquelas que tivemos a chance de viver juntos com você e mainha. Ser filhas de dois sertanejos como vocês é para nós um grande legado. Obrigada!"
Francisco nasceu em São Rafael (RN) e faleceu em Natal (RN), aos 82 anos, vítima do novo coronavírus.
Testemunho enviado pela esposa e pelas filhas de Francisco, Graça, Tatyana e Thalyta. Este tributo foi apurado por Lígia Franzin, editado por Raiane Cardoso, revisado por Juliana Holzhausen e moderado por Rayane Urani em 9 de agosto de 2020.