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Francisco Soares Calheiros

1968 - 2020

Uma vida dedicada ao próximo, tudo em Calheiros passava primeiramente pela necessidade de socorrer alguém.

Francisco nasceu em Itacoatiara, no Amazonas, em uma família com poucos recursos financeiros, no ano de 1968. Ainda adolescente, transferiu-se para Manaus, para terminar o ensino médio e fazer faculdade. A esposa dele, Olívia, conta que ele “dormiu vários meses debaixo da ponte de São Jorge, no bairro que leva esse nome, por não ter onde ficar. Aos poucos, foi aprendendo a fazer pequenos ‘bicos’ como pedreiro, pintor, até camelô”.

Francisco chegou à capital com o sonho de cursar Medicina e com um envolvimento imenso com a arte. Na cidade natal, foi um dos criadores da Fecani – Festival da Canção de Itacoatiara. “Antes de vir para Manaus, foi jurado no concurso de poesia que ocorre todo ano no Fecani”, conta Olívia.

Já em Manaus, tornou-se amigo pessoal do poeta Thiago de Mello, antes mesmo de terminar o ensino médio. “Thiago foi decisivo pelo destino profissional de Francisco: embora tenha alcançado média para cursar Medicina, na Universidade do Amazonas (atual Universidade Federal do Amazonas), optou por fazer o curso de Letras e seguir o caminho literário”, recorda a esposa.

Francisco foi servidor público do Estado, da União e do Município, sendo conhecido por providenciar livros, reformas de salas de aula, enfim, tudo que permitisse um melhor aprendizado. Era comum desembolsar recursos próprios para essas iniciativas. Na literatura, deixou três livros publicados e seis por publicar, nos quais trabalhava durante a pandemia da Covid-19. Suas obras serão republicadas, e os livros não publicados por ele, mas que estavam finalizados, serão publicados também. Poeta, sua obra teve influência de Carlos Drummond de Andrade, Machado de Assis e Manoel Bandeira. “É considerado pela crítica local um expoente literário no Amazonas”, escreve Olívia.

Na área do Direito, além de atuar em várias causas sociais, foi o primeiro advogado do Amazonas a conseguir, após muita luta e trabalho, o Zolgensma — remédio mais caro do mundo, para pacientes no Amazonas.

Francisco não teve a felicidade de ver Isadora, bebê pela qual lutou, receber a infusão da medicação. Na ocasião, ele estava internado em decorrência da Covid-19. “Isadora está viva e crescerá, como era o sonho dele. Ela é portadora de Atrofia Muscular Espinhal (AME)”, conta Olívia.

A educação foi uma vocação de Calheiros, como era conhecido. “Nos cursinhos para vestibular e concurso, ele era uma espécie de guru pela sabedoria que adquiriu em análise de bancas e acerto do que eventualmente caísse em provas. Sua docência foi marcada por muitos prêmios, homenagens e amor. A missão dele era formar pessoas para o mundo. Um ser pensante poderia mudar o Brasil, dizia ele”, frisa a esposa.

Tinha o sonho de voltar para sua terra natal. Mesmo morando em Manaus, toda semana ou ao menos uma vez por mês ele visitava a cidade com sua família.

Dedicado às letras e às origens, conseguiu a concessão de um prédio público abandonado, fez um empréstimo, em nome próprio e pago somente por ele, e reformou o prédio. Assim nasceu a Academia Itacoatiarense de Letras, em 2009. A Academia atua em várias frentes, proporcionando o acesso à cultura aos moradores locais.

Para tentar melhorar as chances de os alunos de lá passarem em vestibulares da Capital ou mesmo da cidade, todos os anos Francisco e Olívia iam para Itacoatiara, para que ele fizesse os chamados “viradões” de estudos e, também, resumisse as obras obrigatórias requeridas nos certames.

Em Manaus ele resumia essas obras e lotava centros de convenções, cursinho e escolas. E recebia por isso. Na cidade natal, o trabalho era voluntário, por amor ao seu povo, conta Olívia: “Sempre quis que o jovem de lá não precisasse passar pelo exílio que ele passou. Nada cobrava do seu povo. Daria até duas vidas por eles”.

Calheiros também era conhecido por ajudar alunos que não podiam pagar cursinhos, bem como por ser o professor que contribuía com a aprovação de muitos alunos, principalmente em Medicina. No ensino superior, sua paixão era por direito penal e constitucional.

Foi em 2002 que Olívia e Francisco se conheceram. E a admiração da futura esposa pelo poeta era grande! Eis o testemunho de Olívia:

“Eu sempre amei poesia e criei um clube chamado Café com Calheiros, pois dos poetas amazonenses, ele se destacava pela escrita, métrica, rima, versos decassílabos. Um poeta nato. Eu e um grupo de amigos nos reuníamos, normalmente em dia de quarta-feira, para falar de poesia — a dele, é obvio. Essa notícia, não sei como, chegou até ele. Naquela época a internet ainda era discada e a evolução era o Orkut... Assim, um dia ele chega numa das reuniões. Foi como se um sonho se realizasse. Nosso ‘ídolo’ literário estava lá. Foi um dia sem igual. A partir de então, começou uma amizade que com o tempo amadureceu, até que nos casamos. Eu posso dizer que fui amada. Uma fã que acabou se casando com o objeto de sua admiração. Isso é uma benção inominável”, enfatiza.

Da união nasceu Thiago (de Carvalho Calheiros), cujo nome foi dado em homenagem a Thiago de Mello. Além de Thiago, Francisco teve outros três filhos, de dois relacionamentos anteriores: Artur, Pedro e Helena.

Na pandemia, tomou todos os cuidados. Mas, em junho de 2020, disseram que era seguro voltar para as escolas. Foi depois disso que ele foi infectado. Manaus chorou a morte de Calheiros, pois ele sempre foi exemplo de que é possível com honestidade e trabalho mudar a história da própria vida.

Calheiros também era envolvido em muita obra filantrópica. Era comum aos domingos, dia de folga, estar em hospitais levando fraldas, colchões especiais, ou algo que os menos favorecidos precisavam.

“Quem convivia com ele sentia uma imensa alegria. Ele era luz, vida, esperança, sonho. Estava construindo em Itacoatiara, na casa dos pais, um centro cultural, para viabilizar o sonho de aproximar mais os itacoatiarenses da cultura. O sonho dele era que não houvesse um lugar no Amazonas sem pessoas alfabetizadas.

Olívia finaliza: “Hoje agradeço a Deus por ter casado com o homem que amei e por todo amor que ele me deu. Eu, meu filho Thiago e meus enteados seguimos com muita fé e esperança de que o mundo seja mais justo e ninguém mais passe pela dor que passamos. Alguém falhou. Alguém disse que era seguro sair, quando não era, e ninguém vai ser punido por isso”.

Francisco nasceu em Itacoatiara (AM) e faleceu em Manaus (AM), aos 51 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela esposa de Francisco, Olivia Costa de Carvalho. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Patrícia Coelho, revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Ana Macarini em 23 de julho de 2023.