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Geni dos Santos Reis

1955 - 2021

Tinha tanto medo de temporal que, ao saber da possibilidade de um acontecer, ia parar na casa de algum vizinho para não ficar sozinha.

Geni, nasceu no Rio de Janeiro e pelo casamento mudou-se para Vitória, conservando as suas atitudes de carioca arretada. Ela não teve filhos biológicos, mas era mãe de muitos pelos caminhos do coração, inclusive podia ser considerada a mãe de toda a família.

Conseguiu levar para perto de si, convencendo-os a mudar de cidade: seus pais, sua irmã com a sobrinha e afilhada Renata. Com a separação do marido que se mudou de cidade, foi morar com eles numa mesma casa se tornando a chefe da família com a morte do pai.

Gostava de trabalhar com o público, quando mais nova num supermercado e mais tarde, quando o marido perdeu o emprego, montaram um bar que administravam com a ajuda de um irmão dela. Ela possuía um perfil que agradava aos clientes com sua animação, brincadeiras e alegria que os cativavam.

O negócio foi prosperando mesmo quando o marido já não permanecia mais ao seu lado. Ela e o irmão fizeram um arranjo no qual ele trabalhava durante o dia e ela até altas horas da noite, o que ganhavam no bar contribuiu para o sustento de toda a família.

Ela, apesar de muito brincar e soltar palavrões o tempo todo, sabia se impor e ai de quem tentasse fazê-la de besta ou pisasse no "seu calo" ou no de alguém da família, porque ela saía em sua defesa com unhas e dentes como se fosse uma leoa assim como a partir do fato se tornava seu inimigo.

Amorosa, tirava a roupa do corpo se fosse preciso para dar a alguém. Era justa e sábia, agia com seu coração gigante e, sendo o desapego em pessoa nunca fez questão de nada de bens materiais, não havia quem a conhecesse que não gostasse dela.

Em casa havia discussões como em toda família, pois ela gostava que as coisas fossem feitas à sua maneira. Conta Renata para ilustrar: “Então se eu chegasse em casa e falasse alguma coisa boba assim: ‘ah, não vamos mais congelar o frango assim, vamos congelar dessa forma que eu acho que fica melhor’... ela falava: ‘tá se metendo por que? Quem sabe sou eu! Sabe assim? Todavia era o jeito dela de ser prestativa. Então estava o tempo todo conosco, se preocupava”.

Tinha tanto medo de temporal que chegava a ser engraçado. Se o tempo estava escurecendo ou se ouvia falar de uma trovoada lá nos Estados Unidos, deixava a casa toda aberta e saía correndo pela rua. Ia parar na casa do vizinho, porquanto tinha medo de ficar sozinha. Não gostava de ir à médicos, às vezes, era preciso ser levada à força até eles.

Geni geralmente demonstrava muita animação, mesmo que por dentro, não estivesse muito feliz. Promovia bons momentos familiares, adorava cantar, dançar e Renata se lembra dela em vários momentos significativos de sua vida em que ela se fazia presente ao lado de sua mãe. Atenta, era a primeira a observar seu estado de humor: “Se eu chegasse em casa cansada, triste ou feliz, se eu tivesse uma promoção no serviço, era ela a primeira pessoa para quem eu contava. Era ela que estava em casa me recebendo todos os dias. Quando eu saía pra trabalhar, ela estava dormindo então eu só passava na frente do seu quarto, olhava e ia embora”.

Aprendeu a cuidar dos outros desde cedo e conservou esse hábito vida afora. Quando criança, seu pai era pescador e a mãe trabalhava em casa de família. Eles saíam cedinho para o trabalho e ela em torno dos dez anos já tomava conta dos irmãos. Acordava, arrumava a casa, dava banho e os levava até a porta da escola. O tempo passou e na vida adulta continuou cuidando dos outros. Tinha uma preocupação exagerada.

Aos domingos gostava de fazer a comida que todos gostavam e ficava trançando do atendimento no bar para o fogão em casa. O único dia do ano que parava mesmo e que ela fechava o bar era o Dia de Natal. Seu nome era Geni e seu sobrenome era trabalho como gostava de se definir. Não gostava de sair e sua diversão era tomar sua cervejinha com as pernas para cima depois que fechava o bar, assistir ao Balanço Geral e ao Programa do Amaro Neto sonhando com o dia em que seu nome fosse falado no programa dele.

Amava o filme Ritmo Quente só por causa do ator principal, Patrick Swayze, assim como de ficar com o controle remoto do microfone no bar, incessantemente cantando músicas com seu Inglês errado só para divertir os clientes.

Tinha para si que era seu dever sustentar todo mundo, mesmo quando ninguém dependia mais do seu dinheiro, continuava pensando que tinha que trabalhar muito, pois alguém poderia precisar. Enquanto que para ela mesma, cultivava hábitos simples como usar o mesmo shampoo e o mesmo batom anos seguidos.

Para Renata, a marca registrada de Geni, era mesmo o seu jeito maternal, que não teve filhos próprios, entretanto que abraçou o mundo e: “Partiu fora do combinado, sem querer ir e nos deixou aqui com um vazio enorme no peito”.

Geni nasceu no Rio de Janeiro (RJ) e faleceu em Vitória (ES), aos 66 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pela sobrinha e afilhada de Geni, Renata Medeiros dos Santos. Este tributo foi apurado por Brenda de Oliveira Teixeira, editado por Vera Dias, revisado por Magaly Alves da Silva Martins e moderado por Rayane Urani em 3 de abril de 2022.