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Gentil Nolasko de Oliveira

1927 - 2021

Pregava peças nos três filhos dando nó nos seus pijamas, colocando creme de barbear na pasta dental e outras brincadeiras.

Gentil era o mais velho dos três filhos de Maria e Leandro. Nasceu em Sorocaba e teve uma infância feliz ao lado dos irmãos Marta e Olavo, que era muito protegido por ele principalmente nos jogos de futebol, já que não era tão bom jogador como ele. Contava que teve pais amorosos e que brincou muito de bola e de bicicleta na rua.

Desde pequeno gostava de animais, em especial de um cachorro que seu pai possuía. Sempre gostou de ler e aprender. Formou-se no curso Técnico de Contabilidade quando a família se mudou para a Zona Norte de São Paulo e, já casado, resolveu fazer a faculdade de Direito para estimular o filho a estudar. Formou-se com mais de 40 anos, exerceu a profissão até quase o final de sua vida e considerava-se um ótimo e justo advogado, que ganhava praticamente todas as causas e processos que assumia.

Gentil conheceu Nilse aos 24 anos por meio de amigos comuns, que, assim como eles, moravam no bairro de Santana. Ele vestia-se muito bem, com ternos de linho de bom caimento, camisas impecáveis e sobretudo. Era muito elegante, esguio, alto e sempre de barba feita ao acordar, um ritual que manteve por toda a vida. E Nilse, na época com 22 anos, era muito bonita, magérrima, de cintura marcada e vestidos da moda feitos por costureiras. Extrovertida, chamava a atenção dos rapazes do bairro.

Ele a convidou para sair pela primeira vez para tomar sorvete e ela aceitou, claro; mas, como não podia deixar de ser, conforme o costume da época, foi acompanhada pelas irmãs. Ela adorava festas e bailes e ele não sabia dançar. Resolveu então entrar em um curso de dança de salão para encantá-la ainda mais. Ela foi o seu par no baile de formatura e os dois tornaram-se o maior par “pé de valsa” da região. Daí para frente onde iam, se houvesse música, lá estavam eles na pista dançando. E esse prazer pela dança foi herdado pelas filhas.

Nilse trabalhava no Aeroclube de São Paulo, no Campo de Marte e, quando se casaram, em dezembro de 1953, enciumado, ele pediu que ela deixasse o trabalho para ser dona do lar, esposa e mãe. E ela assim o fez. Mais tarde, com seus filhos já adultos, Gentil dizia ter se arrependido por não perceber o quanto teria sido importante para a esposa ter seguido em frente com sua vida profissional e também social.

Ela, por sua vez, nunca comentou nada a respeito e o casamento dos dois durou por sessenta e seis anos, até a morte dela, em 2019. Como todo casal, eles tiveram suas rusgas e, quando já mais velhos, implicavam um com o outro, mas eram inseparáveis. Adoravam sair, bebericar, estar com amigos e parentes, e um cuidando do outro, sempre.

Eles foram pais de Leda, Marcelo e da caçula temporã, Leila, que foi muito mimada pelo pai e era chamada por ele, quando criança, de Biscuit. A família pertencia à típica classe média: o marido trabalhando fora e a mulher cuidando da casa. Leila relembra essa época: “Minhas lembranças desde a infância eram dos jantares diários e almoços aos domingos em família. Minha mãe era mais rígida e meu pai era bem flexível. No entanto, os dois eram amorosos e divertidos, sempre ajudando a todos. Éramos uma típica família de ascendência italiana... falas altas e muitos gestos. O papai, dos cinco, era o mais comedido. Extremamente elegante. Ele tinha duas férias por ano e o maior prazer dele era viajar com a família em janeiro e julho. E assim fizemos, mesmo depois das filhas casadas. A casa sempre tinha visita de familiares e de amigos. Com o tempo, fomos crescendo e nossos amigos tornavam-se amigos deles. No Natal, todos os nossos amigos iam para nossa casa para brindar com meu pai. Ele adorava beber cerveja, vinho e caipirinha. Gostava de seu whisky comedido e diário, mas dizia que era preciso saber beber e não misturar”.

“Toda noite ao chegar do trabalho, tomava banho, ia para sala, abria o jornal O Estado de São Paulo — do qual foi assinante e leitor assíduo até o dia de sua morte — e tomava uma dose de whisky, seu ritual sagrado. Quando minha mãe anunciava o jantar, era o último a chegar à mesa e o último a sair. Comia devagar e, por isso, manteve o mesmo peso por cinquenta anos. Se engordava, anunciava que reduziria sua alimentação e logo chegava ao peso desejado. Isto é, dois quilos a menos, nenhum absurdo, mas para ele era muito importante. Cortava o cabelo quase que semanalmente. Gostava muito de "apresentar boa aparência". Gabava-se e divertia-se com as pessoas que não acreditavam na sua idade... sempre lhe davam de 10 a 15 anos a menos. E de fato, morreu aos 94 anos sem rugas e com um físico invejável.”

Gentil gostava de jogar cartas com amigos e familiares tendo sempre a esposa como parceira. Gostava também de dar livros e coleções inteiras para os filhos e sua Bíblia era o dicionário. Ele acompanhou a mudança tecnológica, aprendeu logo a usar computador e celular. Era muito ligado ao Marcelo, o filho do meio e único homem, que morou com os pais até seus 43 anos, quando veio a falecer, deixando uma lacuna na família. Uma perda da qual, na verdade, o pai parece nunca ter se recuperado totalmente.

Sempre foi muito ponderado e soube celebrar a vida. Ele amava viver e vivia um dia de cada vez. O presente, o ser e o estar eram sua força motora. Não pensava no passado e não se preocupava com o futuro. Era um ser humano justo, generoso e muito amoroso, o grande conselheiro dos amigos e familiares. Para Leila, sua principal característica era a vontade de sempre aprender e conhecer algo ou alguém.

Amava estar com a esposa, os filhos e as netas, Gabriela, Lívia e Annanda e também com a bisnetinha que chegou a conhecer. Apreciava estar entre amigos e possuía a incrível habilidade tanto de conquistar os amigos dos filhos — que costumavam visitá-lo mesmo quando estes não estavam presentes — como de fazer com que suas filhas se tornassem amigas de seus fiéis amigos do ambiente de trabalho, os queridos Michel, Lucia e Xerxes. Esse grupo reunia-se mensalmente para um "happy hour" e esse era um momento que ele prezava tanto, que até conseguiu, em seus últimos seis anos de vida, agregar a ele suas filhas e sua neta Gabriela. Além disso, conseguiu ser admirado também pelos genros Augusto e Kiko, que o respeitavam como um pai e, cercado por tanta gente querida, ele dizia ter atingido sua plenitude.

Quando ele pregava peças nos filhos, Leila relata como costumava dar o troco: “Ele costumava separar, à noite, a roupa e o sapato para trabalhar no dia seguinte, porque não queria incomodar minha mãe. Certa noite, eles já estavam dormindo, eu troquei os seus sapatos. Ele tinha um par na cor preta muito parecido com um outro par marrom. Ele não percebeu e foi trabalhar com um pé marrom e um pé preto. Neste dia teve uma reunião super importante e contou que os presentes não conseguiam tirar os olhos dos pés dele. Ele contou que todos, amigos e funcionários da empresa, riram o dia todo. Ele sabia que um dos filhos tinha feito a traquinagem e prometeu vingança", conta Leila, divertindo-se. "Depois de um tempo, troquei as cores das meias. Sempre muito bem-humorado, levava tudo na brincadeira”.

Gostava de ler e passear. Amava viajar como se tivesse rodinhas nos pés. Certa vez fizeram uma viagem de carro para a Bahia que durou um mês e que para Leila foi uma aventura inesquecível: “Ele foi dirigindo e lembro-me das paradas para comer, das cantorias no carro e dos pernoites em pequenas cidades. Mas, com certeza, sua melhor viagem, de quarenta dias, foi para Europa. Um presente meu e da minha irmã para meus pais. Eles adoraram toda a viagem, especialmente Portugal, França e Itália. Conheceram muitos países”.

Depois de aposentado, ele viajava também com seus amigos para Bertioga, uma vez por ano — só entre homens. Quase sempre trazia seu troféu como campeão de bocha e, junto com ele, quitutes para os filhos.

Leila arremata esta homenagem destacando o que admirava no pai: “O respeito pelo outro, o senso de justiça. O valor da amizade e a vontade de viver e de adquirir conhecimento. A busca entre equilíbrio físico e mental. Pai extremamente amoroso. Adorava expressar seu amor com um forte abraço, beijos e gentileza. Seus apelidos: Biscuit, Papito, Gentileza, Gentiro. Sou grata por tudo que ele me ensinou e demonstrou sobre caráter, respeito e dignidade e, sobretudo, amor ao próximo e à vida. Enquanto eu existir ele será imortal. Se pudesse escolher em uma próxima vida, queria todos eles novamente, a mesma família de novo. Serei sempre grata a você, Papito... te amo!”

Gentil nasceu em Sorocaba (SP) e faleceu em São Paulo (SP), aos 94 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pela filha de Gentil, Leila Maria de Oliveira Russo. Este tributo foi apurado por Mariana Nunes, editado por Vera Dias, revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Rayane Urani em 27 de janeiro de 2022.